CAPA
PONTO DE PARTIDA (PÁG. 1)
O médico, os planos de carreira e os novos desafios
ENTREVISTA (PÁG. 4)
"É preciso aprender a gerir a própria emoção"
CRÔNICA (PÁG. 10)
Envelhecendo, mas sem desanimar
CONJUNTURA (PG. 12)
Você é Nomofóbico?
VANGUARDA (PG. 16)
Progressos da cirurgia bariátrica
DEBATE (PG. 20)
Planos de Carreira para Médicos
SINTONIA (PG. 26)
O Direito e a certeza médica
HISTÓRIA DA MEDICINA (PG. 29)
Como é bom ser bom
HOBBY (PG. 32)
Paixão pela arte e fascínio pela Medicina
GIRAMUNDO (PG. 36)
Cérebro criativo
PONTO COM (PG. 38)
Quem diria...
CULTURA (PG. 40)
Cultura, emoção e história
GOURMET (PG. 44)
De bem com a vida
FOTOPOESIA (PÁG. 48)
Trajetório Poética do Ser
GALERIA DE FOTOS
SINTONIA (PG. 26)
O Direito e a certeza médica
Eduardo de França Helene
O Direito e a certeza médica
O filme My sister’s keeper (Uma prova de amor), cujo enredo é bastante comovente, além de ter um aspecto jurídico interessantíssimo, provocou esta reflexão a respeito da influência da ciência médica sobre o Direito. Os detalhes, a discussão, o pedido da irmã doente e, até mesmo, a inspeção judicial feita pela magistrada, assim como o fato de ela ter perdido recentemente um filho adolescente em um acidente, acabam influenciando de alguma forma a dinâmica do filme.
Dentre os muitos casos interessantes de Bioética, um bastante recente chamou a atenção da mídia internacional: o caso do bebê inglês Charlie Gard. Charlie sofria de miopatia mitocondrial, doença genética raríssima e incurável que provoca a perda da força muscular e danos cerebrais. Ele nasceu em agosto de 2016 e, dois meses depois, precisou ser internado no Great Ormond Street Hospital, em Londres, onde passou
praticamente toda a sua breve vida.
Consta que o bebê tinha danos cerebrais irreversíveis, não se movia, não escutava, não enxergava, tinha problemas no coração, fígado e rins. Seus pulmões funcionavam apenas por aparelhos.
Os pais de Charlie, primeiramente, quiseram levá-lo para casa, para que ele viesse a, naturalmente, falecer na companhia dos pais. Depois, insistiram em levá-lo aos Estados
Unidos, onde havia um tratamento ainda experimental. O pedido foi negado. Charlie morreu no hospital, no Great Ormond.
Os pais de Charlie, Chris Gard e Connie Yates
O caso retrata, a rigor, o embate para se saber o que é, na verdade, o melhor interesse da criança: a vontade dos pais ou o que os médicos concluem sobre ele. Todas as
instâncias do Judiciário apoiaram os médicos e contrariaram os pais.
Ao ler o Acórdão original da Royal Courts of Justice, caso número FD17P00103, pode-se compreender que, no julgamento, explorouse qual seria a conduta que representaria o melhor interesse do menor. Esse princípio é mesmo universal. O embate era entre a vontade dos pais – que envolve inegavelmente o lado emocional, de tentar levá-lo aos Estados Unidos para uma última tentativa de cura – e a conclusão médica unânime de que o caso dele, infelizmente, era totalmente irreversível. A oferta de tratamento experimental, pelos norte-americanos, nunca antes testado em seres humanos nessas
condições de saúde, sem testes em modelos animais e sem dados publicados, gerou nos pais uma expectativa infundada de cura e de esperança.
Pelo que se depreende do Acórdão, os médicos dos Estados Unidos foram até a Inglaterra vêlo. E todos os médicos, sem exceção – ingleses, alguns espanhóis e, inclusive, os norteamericanos que o acompanharam e eram os responsáveis pela terapia experimental – foram unânimes: Charlie não sobreviveria. O Acórdão diz que um dos norte-americanos teria enfatizado: “... posso entender as opiniões de que ele
está tão severamente afetado pela encefalopatia que qualquer tentativa de terapia seria inútil. Eu concordo que seria muito improvável que ele melhorasse com a terapia”.
O Direito não pode ser alheio à ciência médica e, em determinados casos,
ela deve ser levada em consideração
Ou seja, mesmo o tratamento que os pais insistiam em realizar, nos Estados Unidos, provavelmente não surtiria efeito. O próprio médico responsável pela terapia experimental atestou que certamente não funcionaria. A enfermidade de Charlie estava, de fato, num estágio tão avançado que o corpo médico chegara a uma conclusão unânime: ele morreria em poucos dias.
“Tarefa triste”
Nesse embate, os magistrados realçaram que tinham uma “tarefa triste, penosa e trágica” de decidir o que era melhor para Charlie, e concluíram, de forma até mesmo emotiva: “Só espero que, com o passar do tempo, eles (os pais) venham a aceitar que o único curso agora para os melhores interesses de Charlie é o de deixá-lo morrer em paz, e não lhe impor mais dor e sofrimento”. A decisão foi confirmada pela Corte
Europeia de Direitos Humanos.
O caso é bastante parecido com a discussão que o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou, com a possibilidade ou não do aborto dos fetos anencefálicos, na ADPF nº 54. A rigor, o STF firmou a tese de que, nos casos em que há laudo médico indiscutível de que o feto não desenvolveu o encéfalo, e que as chances de sobrevida são mínimas (ou nulas), o aborto passaria a ser fato atípico, um indiferente penal. E os principais argumentos foram: como o feto anencéfalo não desenvolve o cérebro, ele não teria qualquer condição de sobrevivência extra-uterina. Perdurar a gestação por meses
seria apenas prolongar o sofrimento da mãe, considerando que a morte da criança ao nascer, ou mesmo antes do parto, seria cientificamente inevitável. E, por fim, que rigorosamente sequer haveria aborto porque o feto anencéfalo é desprovido de cérebro e, segundo a Lei nº9.434/1997, o marco legislativo para se aferir a morte de uma pessoa ocorre no momento em que se dá sua morte cerebral.
O ministro Marco Aurélio, em seu voto, enfatizou, inclusive, que “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível... O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”.
A decisão foi técnica e isenta, dentro do possível, de paixão. Era uma certeza médica
que Charlie não sobreviveria e que não havia nada mais a ser feito. Uma eventual decisão em sentido contrário, de liberá-lo para viajar aos Estados Unidos, para fazer o tratamento experimental – com o risco de falecer durante o vôo – também estaria adequada e, talvez, causasse menos desgaste emocional nos pais e menos incompreensão dos leigos e curiosos. Mas não mudaria os fatos.
O caso de Charlie Gard e o julgamento da ADPF 54 pelo STF têm pontos de contato. O
Direito não pode ser alheio à ciência médica e, em determinados casos, a certeza médica deve ser levada em consideração, e passa a ser, inclusive, determinante para desenhar os rumos da decisão.
*Juiz de Direito da Vara Cível da Comarca de Santa Adélia (SP)