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Edição 196 - 12/2003

ENTREVISTA

Eduardo Jorge: "O SUS é uma das últimas utopias"


"O SUS é uma das últimas utopias"

Nascido em Salvador, criado na Paraíba e radicado em São Paulo, o médico sanitarista Eduardo Jorge foi o coordenador da 12ª Conferência Nacional de Saúde (cujos detalhes podem ser conferidos na página 4). Foi deputado federal pelo PT durante vinte anos, deputado Constituinte, um dos autores e ferrenho defensor da legislação sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), além de co-autor da Emenda Constitucional nº 29, que vincula ao setor Saúde porcentagem dos orçamentos federal, estaduais e municipais. Veja a entrevista com esta figura de destaque no cenário da Saúde.



Jornal do Cremesp. Como o senhor, autor da Emenda Constitucional nº 29 (EC 29), avalia o atual orçamento da Saúde?
Eduardo Jorge. A EC 29, aprovada em 2000, que vincula boa parte do orçamento da Saúde às esferas municipal, estadual e federal - vinculação esta que a Educação já tem desde 1988 - é importantíssima. Portanto, a primeira exigência da Conferência Nacional de Saúde (ver matéria na página 4) é que os municípios, Estados e governo federal a cumpram religiosamente. Queremos também que o Ministério Público processe imediatamente os 17 governadores que não seguiram a Emenda em 2001, pois tais processos estão engavetados.

Com a EC há a possibilidade de sairmos dos R$ 0,70 por pessoa/dia, gastos em Saúde em 2002. Isso, juntando as verbas federais, dos 27 Estados e dos cerca de 5.000 municípios.

Aplicada corretamente, dentro de dois ou três anos talvez possamos chegar a R$ 1,00 por pessoa. Aí será preciso discutir outros mecanismos para aumentar para R$ 2,00 por pessoa/dia. Acho que esse é o mínimo que necessitaríamos para a Saúde, num curto prazo.

JC. O SUS vem fazendo a parte que lhe cabe, apesar dos poucos recursos?
Eduardo Jorge. O milagre que o SUS tem feito, por exemplo, na área de prevenção, de vacinação, de transplante, com R$ 0,70 por pessoa/dia, chegou ao limite. Insisto que temos que ir para R$ 1,00 daqui dois ou três anos e, talvez, chegar a R$ 2,00 daqui uns quatro, ou cinco anos. Assim o SUS continuará crescendo como vem ocorrendo nos últimos15 anos, nem que tenhamos que discutir, por exemplo, a questão da renúncia fiscal das pessoas Físicas e Jurídicas referentes a gastos da assistência médica privada, calculada em R$ 2,4 bilhões para 2004. Sou a favor de que este atendimento continue na iniciativa privada mas sem renúncia fiscal. Com essa verba poderia ser montado um fundo especial de modernização do SUS, com três tarefas: universalizar a atenção básica; implantar 80 mil equipes do Programa de Saúde da Família (PSF); e modernizar os prontos-socorros e o atendimento de urgência e emergência, melhorando o conforto das enfermarias dos nossos hospitais.

Defendo essa posição de investir essa verba por ano, durante 10 anos. Não da mesma forma que Antonio Palocci, que quer suspender o subsídio do imposto de renda, mas quer colocar no dinheiro do Ministério da Fazenda.

Até admito que a área da Saúde administre, junto com ele, um fundo especial de modernização desse montante, mas jamais vincular à EC, porque o dinheiro desaparece no Ministério da Fazenda e ficamos sem nada.

JC. Como ocorreu com a CPMF?
Eduardo Jorge. É uma burrice tremenda. Existe uma Emenda Constitucional, mas esse dinheiro da renúncia fiscal seria novo.

JC. São metas ambiciosas não?
Eduardo Jorge. Isso é o que a Constituição manda: sermos ambiciosos. O SUS é uma das únicas utopias ainda existentes no país. Vamos abandonar as utopias?

JC. Ainda sobre o SUS, temos um problema gravíssimo, que é a má formação em gestão pública. Isso leva não apenas a desperdícios, como a permissividades e a aventuras tecnológicas sem o menor critério dentro do sistema. Concorda?
Eduardo Jorge. Nos últimos quinze anos, já foi criada no SUS uma nova geração de gerentes, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos e, agora, precisamos dar saltos de qualidade cada vez maiores, porque a política de saúde é muito complexa. Realmente, deve haver um aparelho de formação e educação continuada e permanente, seja para a enfermeira e para o médico que estão lá na frente, seja para o gestor.

São escolas que a gente tem que formar e reformar.  Porque, durante anos e anos, formamos as pessoas para um modelo que não era universal e popular.

JC. O senhor chegou a dizer que com a unificação em um só Ministério, o da Seguridade Social, o orçamento aumentaria.
Eduardo Jorge. As contribuições sociais que criamos, na época da Constituinte, visaram tratar de Previdência, Saúde e Assistência Social.
Nestes 15 anos, estão servindo para tudo, além dessas áreas: para várias outras políticas e, ainda, para gerar superávit. Foi assim no governo Fernando Henrique e está sendo assim no governo Lula.

Vamos colocar claramente que esse dinheiro só pode ser gasto nessas três áreas, não deixando ninguém desviar para as demais políticas públicas e outras finalidades. Com isso, teríamos este ano R$ 160 bilhões para gastar com Previdência, Assistência Social e Saúde.

JC. Se esse Ministério único fosse aprovado na Conferência, o governo assumiria essa decisão também?
Eduardo Jorge. Não sei. Isso é uma mudança de muito vulto. O importante é que se a coisa funcionar melhor e se tiver mais recursos garantidos à Previdência, Assistência Social e à Saúde no topo, seria a demonstração de valorização da Saúde.

Ao mesmo tempo, seria uma decisão sábia, porque teria mais recursos. Mas isso implicaria num posicionamento político da área da saúde a respeito dessa questão.

JC. Por que, inicialmente, houve certa resistência ao orçamento da Saúde?
Eduardo Jorge. Na proposta ao orçamento da Saúde, mandada para 2004, o governo federal não cumpria a Emenda Constitucional.
Mas o movimento social fez o governo recuar e se comprometer a corrigí-la. A votação deve acontecer até 20 de dezembro e acredito que ele vai cumprir a palavra.

Realmente a forma como foi encaminhada era errada. Seria um exemplo muito negativo: se Brasília não cumpre, por que o Rio de Janeiro iria cumprir?

JC. O senhor falou muito do SUS caminhando dentro do aparelho do Estado e com os mecanismos de Estado. Há, nisso, uma participação importante do terceiro setor, não só na elaboração política, como também no mecanismo de controle social?
Eduardo Jorge. O SUS não é um sistema estatal. Foi pensado como sistema público. Portanto, tem um componente de execução, de prestação de serviços e deve ter uma coluna vertebral estatal propriamente dita. Mas é plenamente desejável que a área filantrópica e mesmo a área privada lucrativa que desejarem trabalhar sob os princípios do SUS estejam juntas conosco, na execução de serviços.

E há exemplos muito claros da importância desse setor, não só em Santas Casas, tradicionalíssimas no Brasil. Há outros de administração conjunta do Programa de Saúde da Família aqui na capital de São Paulo, que mostram como entidades como o Hospital São Paulo, Hospital Santa Marcelina além da Santa Casa de São Paulo têm sido fundamentais na sua experiência, na sua agilidade administrativa, no seu compromisso com o SUS, para avançar o sistema numa região difícil como esta.

JC. O senhor,  figura que hoje representa a saúde pública no Brasil,  poderia traçar uma visão histórica do que melhorou em Saúde?
Eduardo Jorge. Em relação ao SUS, tenho insistido que a dona de casa que está na fila de um hospital ou de uma unidade básica atrás de dez ou vinte pessoas, com uma criança chorando no braço, tem razão de reclamar da gente, que é diretor de hospital, de unidade básica ou secretário.

Precisamos ter paciência e ouvir as críticas da população. Por outro lado, para fazermos justiça ao Brasil, aos governos federal, estaduais e municipais, nunca podemos esquecer do que era o país em termos de saúde em 1989 e do que é hoje em 2003, com o avanço dos indicadores, e da oferta do sistema universal. É visível e qualquer pessoa isenta de partidarismo reconhece isso.


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