CAPA
PONTO DE PARTIDA (PÁG. 1)
O médico, os planos de carreira e os novos desafios
ENTREVISTA (PÁG. 4)
"É preciso aprender a gerir a própria emoção"
CRÔNICA (PÁG. 10)
Envelhecendo, mas sem desanimar
CONJUNTURA (PG. 12)
Você é Nomofóbico?
VANGUARDA (PG. 16)
Progressos da cirurgia bariátrica
DEBATE (PG. 20)
Planos de Carreira para Médicos
SINTONIA (PG. 26)
O Direito e a certeza médica
HISTÓRIA DA MEDICINA (PG. 29)
Como é bom ser bom
HOBBY (PG. 32)
Paixão pela arte e fascínio pela Medicina
GIRAMUNDO (PG. 36)
Cérebro criativo
PONTO COM (PG. 38)
Quem diria...
CULTURA (PG. 40)
Cultura, emoção e história
GOURMET (PG. 44)
De bem com a vida
FOTOPOESIA (PÁG. 48)
Trajetório Poética do Ser
GALERIA DE FOTOS
DEBATE (PG. 20)
Planos de Carreira para Médicos
Solução para os profissionais e para a população
A grande desigualdade na distribuição de médicos é um relevante problema da Saúde pública no Brasil. Para resolvê-lo, há muito o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) reivindica a implantação de planos de carreira para os profissionais da Medicina. Muitas cidades já os adotaram, como, por exemplo, a Prefeitura de São Paulo. Mas eles são suficientes para suprir a carência de médicos nas regiões de difícil provimento? Ou são necessárias medidas adicionais para complementá-los? Como as condições de trabalho, a aposentadoria, o trabalho terceirizado e outras questões do trabalho médico estão relacionadas aos planos de carreira?
Para responder a estas e outras questões, a Ser Médico realizou um debate com a participação de Christy Ganzert Pato, mestre em Ciências Políticas (USP), doutor em Filosofia (USP), professor adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul (SC), assessor especial e chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão da Prefeitura de São Paulo (2013-2015); e Moacyr Perche, médico, ex-conselheiro do Cremesp, especialista em Saúde Preventiva e Social e em Informática em Saúde, e presidente eleito do Sindicato dos Médicos de Campinas e Região. A mediação ficou a cargo de Eurípedes Balsanufo Carvalho,
conselheiro e coordenador da Câmara de Políticas Públicas do Cremesp, médico do
Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo e professor na Faculdade de Medicina da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid).
Eurípedes Balsanufo – A pesquisa Demografia Médica, divulgada em março de 2018,
mostrou, mais uma vez, grande desigualdade na distribuição de médicos entre as várias regiões do Brasil, em particular entre o Interior e capitais. São Paulo é o Estado com a menor desigualdade. Os planos de carreira podem diminuí-la? Qual a importância deles? Os das universidades públicas, por exemplo, são um mecanismo importante para vinculação de seus docentes.
Christy Ganzert – Sim, podemos fazer um paralelo com a carreira de professor de universidade federal. Quando fizemos o debate na Prefeitura de São Paulo sobre as carreiras da Saúde, em especial a dos médicos, enfrentamos a questão de como fixá-los na periferia da cidade. Para as universidades federais, fixar os professores fora dos grandes centros urbanos é um problema ainda maior. A forma encontrada por elas foi: se um professor concursado de uma Federal, por exemplo, a do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa), passar no concurso de outra Federal, ao ser novamente nomeado ele volta para o início da carreira. Apesar de relativamente bons, somente salários não conseguem a fixação. Eles são uma condição necessária, mas não suficiente. Na cidade e no Estado de São Paulo, ocorre o mesmo. Vamos aos números: de dezembro de 2013 a março de 2018, nas carreiras da Saúde da Prefeitura de São Paulo, o número de inativos aumentou 49% e o de ativos caiu 8%. Ou seja, os concursos conseguiram repor quase o total dos profissionais aposentados do setor. No caso
dos médicos, o número de inativos, de 2013 a 2018, aumentou 85% e o de ativos caiu 26%. Os concursos não conseguiram repor os médicos, embora haja a carreira, a estabilidade e um salário razoável. Se lembrarmos que em março de 2013 ele era de R$ 5.624,00 (antes da primeira avaliação de desempenho), para o médico com carga horária de 40 horas semanais, e que atualmente o salário de início de carreira de médico, para 40 horas, é R$ 12 mil – ou seja, um reajuste de 113% –, vemos que, mesmo assim, a Prefeitura tem alguma dificuldade em fixar esses profissionais não apenas na periferia, mas na carreira.
Eurípedes – O que está faltando?
Christy – Acho que na Saúde poderíamos fazer concursos setoriais, como os das universidades federais. Juridicamente, é possível. O profissional prestaria concurso para atuar em uma região X. Não seria preciso seguir necessariamente as divisões das Subprefeituras; a Secretaria Municipal de Saúde saberia qual a melhor distribuição geográfica. O profissional teria então de ficar na região no mínimo até cumprir o probatório, antes de poder ser transferido para outra região, ou ainda um tempo X estipulado. É possível montar vários desenhos de concursos para sair de uma certa lógica perversa de alguns servidores públicos: muitos entram verdadeiramente dispostos ao desempenho da função pública, mas logo sucumbem à lógica do “agora
sou servidor público e, se quiserem que eu trabalhe na periferia, têm de me dar algo a mais”.
Eurípedes – Como ficam as condições de trabalho, a estrutura do serviço e a questão da educação continuada?
Christy – Somente o salário não é suficiente para alocar as pessoas. Fixá-las, de forma mais inflexível, também não é, pois, às vezes, as condições de trabalho são tão ruins, que o médico, ou a médica, não aguenta e sai. Boa carreira é sempre condição necessária, mas não suficiente.
"Apesar de relativamente bons, somente salários
não conseguem a fixação"
(Christy)
Moacyr Perche – Particularmente para o médico, a questão da fixação é importante na carreira profissional, mas é preciso também garantir qualidade de vida e não apenas a dedicação ao serviço. Sabemos que 60% têm, em média, três vínculos empregatícios diferentes. A dedicação a eles está diretamente relacionada ao vínculo trabalhista, que é a carreira e a estabilidade, importantes para se trabalhar direito e garantir a qualidade de vida. Ele garante, também, a possibilidade de planejar, que é essencial na carreira.
Outra questão importante é que a estabilidade do médico garante a qualidade da atenção, fundamental para o usuário, pois assegura a integralidade e a continuidade do tratamento, ao diminuir a rotatividade dos profissionais. Essas questões são pouco abordadas quando se fala da carreira do profissional da Medicina.
Eurípedes – Além da carreira, o que os senhores acham que é importante para fixar os
profissionais nas unidades de saúde?
Moacyr – A Demografia Médica tem um capítulo específico no qual os egressos das escolas de Medicina respondem a essa indagação. Eles querem segurança no trabalho, vínculo trabalhista, estabilidade, boas condições de trabalho e ascender na carreira ao longo da vida profissional. Não precisamos inventar a roda. Está muito claro. Só precisamos enfrentar o desafio de colocar isso em prática.
Eurípedes – Na cidade de São Paulo, até 2013, a remuneração médica era constituída de várias gratificações, os chamados penduricalhos, que não eram incorporados à aposentadoria. Qual foi a solução, professor Christy, encontrada pela Prefeitura, por meio da equipe coordenada pelo senhor na Secretaria de Gestão?
Christy – Foi uma batalha. Quando não se valorizam as carreiras, o município ou o Estado resolvem a reposição salarial dos profissionais inventando gratificações. Na Prefeitura de São Paulo, a cada data-base um sindicato reivindicava um reajuste e não conseguia, mas ganhava uma determinada gratificação. Isso ocorria nas várias carreiras, não apenas nas da Saúde. Em março de 2013, o sistema de gestão de folha
de pagamentos da Prefeitura paulistana tinha cerca de 600 rubricas distintas de pagamento. Algumas delas eram relativas a apenas um punhado de pessoas. Era irracional do ponto de vista da gestão da folha e das carreiras. Havia muitos funcionários no mesmo nível, contudo com salários diferentes. A solução encontrada,
inclusive para ter segurança jurídica, foi nos inspirarmos nas carreiras que já foram transformadas no governo federal. A grande mudança de paradigma do ciclo de gestão foi o subsídio. O princípio dele, de parcela única remuneratória, não é só para parlamentares, mas também para servidores públicos organizados em carreiras. Sabemos que os penduricalhos envolvem também um certo jogo entre o poder público e os sindicatos. O sindicato diz: “o salário é só de R$1.800”. Aí você fala: “não, R$1.800 é o salário-base, mas tem as gratificações etc. e, juntando tudo, o salário inicial é de R$ 5.600”. Ou seja, o subsídio também implica em transparência sobre a remuneração do servidor. No caso da Saúde, a situação anterior também afetava diretamente
o Instituto de Previdência Municipal de São Paulo (IPREM), pois devido à natureza
de vários penduricalhos a contribuição previdenciária incidia apenas sobre o salário-base, prejudicando a arrecadação previdenciária. Ao mesmo tempo, rebaixava muito a aposentadoria do servidor. Isso, pelo menos, não acontece mais. Agora há mais previsibilidade e mais controle da folha de pagamento.
"A aposentadoria com valor integral é importante para adesão do profissional
de saúde à carreira"
(Eurípedes)
Eurípedes – O valor único, que é o subsídio recebido pelos médicos que trabalham na
Prefeitura paulistana, vale integralmente para a aposentadoria?
Christy – Sim, hoje ele é considerado integralmente como base contributiva para o sistema previdenciário. Os aposentados também tiveram essa mudança. Mas para não onerar demais a folha de pagamento, inviabilizando o ajuste de mais de 100% nos estágios iniciais das carreiras, não fazia sentido dobrar também o salário dos que já ganhavam mais de R$10 mil.
Eurípedes – A aposentadoria com valor integral é importante para adesão do profissional de saúde à carreira...
Christy – Entendemos “integralidade” como o último salário integral, algo que se aplica apenas aos servidores que ingressaram antes de 2003, o que acaba sendo uma fonte de desequilíbrio enorme no sistema. Na Saúde, há cinco anos, tínhamos em torno de 17 mil funcionários na ativa e 8.800 inativos. Hoje, no geral, temos quase 16mil na ativa e cerca de 13 mil inativos. Saímos de uma relação de 2 para 1, para quase 1 para1. Aí o sistema entra em desequilíbrio, ainda mais quando se tem uma base muito grande de
servidores que ingressou antes de 2013, e que vai levar o último salário integral, sem ter contribuído, durante a ativa, sobre esse valor médio. Tínhamos muitos profissionais com uma idade média um pouco avançada. Quando viram que a situação havia melhorado, muitos deles decidiram se aposentar. É a questão da aposentadoria
precoce, que tem a ver com a discussão da mudança da legislação previdenciária.
Eurípedes – Mas, e do ponto de vista de justiça para os trabalhadores, qual a sua opinião?
Christy – Como a base contributiva inicial era muito ruim, as pequenas distorções que possam ter ocorrido compensam o geral. E o subsídio aumentou a base contributiva para o IPREM.
Moacyr – Não dá para fazer uma discussão da carreira, desvinculada da aposentadoria. Campinas também passou por esse processo em 2007 e em 2012. Tínhamos também inúmeros penduricalhos. Os valores de remuneração à época foram integralizados ao salário, em um valor único. Hoje, temos apenas duas rubricas diferentes, que inclui o incentivo à fixação na periferia, não só para os médicos, mas para toda a equipe, o que é muito importante.
Eurípedes – Na periferia de Campinas e nas cidades representadas pelo Sindicato dos Médicos local também faltam médicos?
Moacyr – Sim. Isso se deve também à precarização da relação de trabalho do médico que trabalha no serviço público. Como se paga um baixo salário e há baixa fiscalização, temos uma flexibilização da relação de trabalho, provocando uma falsa expectativa de uma parte dos médicos de que o não cumprimento da jornada é um direito adquirido. É uma discussão difícil de fazer com a categoria, que continua desejando a inserção liberal no mercado de trabalho.
Christy – Alguns profissionais de diferentes carreiras, em São Paulo, acabam incorporando isso também, dizendo: “já que meu salário é baixo, vocês fingem que me pagam e eu finjo que trabalho”. Felizmente não são a maioria. Mas não podemos ignorar que isso ocorre.
"A estabilidade do médico garante a qualidade da atenção, fundamental para o usuário"
(Moacyr)
Eurípedes – O incentivo para locais de difícil acesso mudou a relação de trabalho dos médicos? Melhorou o atendimento da população e o número de consultas?
Christy – Faltou um segundo salto. Seria preciso, também, uma gestão adequada de equipes, definindo de forma distinta os cargos de chefia, com uma remuneração melhor pelo cargo efetivo, pois esses salários são muito baixos, entre outras coisas. Na iniciativa privada, grandes consultorias internacionais concluíram que mudanças na gestão de equipes são melhores do que gratificações atreladas à entrega de uma
produtividade individual.
Moacyr – Em Campinas, também, vemos que não basta apenas ter um plano de carreira. Tampouco basta focar apenas no salário. A questão é como chegar a um equilíbrio entre salário e condições de trabalho, que seja competitivo regionalmente, não só na carreira pública, mas também no setor privado. Tem algo interessante, que coloca mais lenha na fogueira: a questão de ter o Mais Médicos na região, que fixa o profissional por meio de uma carreira federal. Por isso, quando a gente discute “carreira”, estamos falando do quê? De carreira estadual, federal ou municipal? Como se dá a dinâmica entre essas três possibilidades? Essa discussão é um grande desafio para a categoria médica.
"Há uma falsa expectativa por parte de alguns médicos de que o não cumprimento da jornada é um direito adquirido"
(Moacyr)
Eurípedes – Qual a opinião dos senhores em relação à concessão de eventuais bônus
quadrimestrais, por avaliações, quantitativas e qualitativas?
Christy – Os auditores fiscais tributários têm o bônus, mas eles possuem indicadores e mecanismos objetivos para estabelecer metas. Acho que vale a pena tentar montar um indicador objetivo para outras carreiras. Temos tentado criar indicadores de desempenho nas universidades federais, mas não é simples. É difícil os sindicatos entenderem essa necessidade.
Moacyr – A discussão que se faz é: uma vez que os médicos exercem uma atividade complexa, como estabelecer indicadores qualitativos e quantitativos que, de fato, meçam o esforço individual? Os profissionais podem dizer: a Prefeitura não me dá condições de trabalho e quer me cobrar qualidade? Acho que, se pagássemos por qualidade, teríamos de pagar 100% para todos os profissionais de saúde, porque, com o déficit de financiamento, o trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS) é um herói.
Eurípedes – Qual a importância de negociações com entidades representativas dos servidores públicos, para a implantação das carreiras?
Christy – É impossível não dialogar com os sindicatos. Muitas vezes, não tem como incorporar suas demandas, mas são eles que conhecem as especificidades da carreira e o cotidiano da atuação dos profissionais de seu setor.
Moacyr – Esse diálogo é essencial. No caso dos médicos, é necessário uma articulação a mais, porque, principalmente no Interior, o sindicato dos servidores públicos, muitas vezes, não consegue ter um olhar para as especificidades da categoria médica. Por isso, a negociação com os sindicatos dos médicos é essencial. Além disso, médicos são autorizados a ter dois vínculos públicos, o que gera mais um complicador
na questão da carreira profissional.
"Se os profissionais se sentem parte da comunidade
onde se formam, tendem a permanecer ali"
(Christy)
Eurípedes – Existem planos de carreiras para os médicos nos serviços de saúde terceirizados?
Christy – Em algumas Organizações Sociais (OSs) de São Paulo predominam a contratação como Pessoa Jurídica (PJ) e, em outras, há um misto, de PJ e CLT. Mas não conheço nenhuma com plano de carreiras.
Euripedes – As OSs tem algum estímulo para regiões de difícil provimento?
Christy – Algumas, com as quais tive contato, acabavam optando, também, pela gratificação.
Eurípedes – Na região de Campinas, há planos de carreira nos setores terceirizados?
Moacyr – Não conheço nenhum nos setores terceirizados. Até porque há uma agravante: a principal forma de contratação nas terceirizadas e no setor privado é a contratação do médico como PJ, o que significa a precarização do vínculo de trabalho. Além disso, temos problemas com OSs em Hortolândia e Sumaré, que promovem
a rotatividade de profissionais para baixar custos e reter mais lucro.
Eurípedes – Os senhores conhecem países que resolveram a questão da presença de médicos em região de difícil acesso?
Christy – Em vários países, há centros de formação próximos do local onde o profissional nasceu e cresceu. A polêmica abertura de novos cursos de Medicina estava, em parte, atrelada a essa estratégia, de interiorização dos cursos. Se os profissionais se sentem parte da comunidade onde se formam, tendem a permanecer ali.
Moacyr – Temos de admitir que, para conseguir resolver a questão do atendimento à saúde em locais de difícil acesso, no Brasil, precisamos pensar “fora da caixinha”. Por exemplo, a Câmara Técnica de Informática em Saúde, do Conselho Federal de Medicina, está discutindo o uso da telemedicina para cobrir parte desses vazios assistenciais. Acho que é a única saída, pois são lugares onde não há qualidade de vida, nem educação continuada; e onde o médico não consegue ter estabilidade. É isso ou teremos de trabalhar com outras formas mais clássicas, como o serviço civil obrigatório.