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Lítio e neuroproteção


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Edição 80 - Julho/Agosto/Setembro de 2017

EM FOCO (pág. 22)

Lítio e neuroproteção

Lítio e neuroproteção

 

Estudos mostram que o lítio pode ser benéfico para o cérebro e para outros órgãos e sistemas corporais

 

Orestes V. Forlenza*

O lítio foi introduzido na prática psiquiá­trica na segunda metade do século passado e tornou-se referência para o tratamento de transtornos mentais graves, sobretudo aqueles que cursam com agitação psicótica. Persiste até os dias de hoje como referência para o tratamento da mania aguda e prevenção de recaídas no transtorno afetivo bipolar (TAB), apesar de induzir efeitos adversos relevantes e de haver opções terapêuticas com margens de segurança mais amplas. Os sais de lítio figuram entre os medicamentos considerados “essenciais” pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que relaciona os compostos de presença obrigatória nos serviços de saúde.

Estudos mostram que os efeitos pleiotrópicos do lítio podem ser benéficos não apenas para o cérebro, mas também para outros órgãos e sistemas corporais. Isso pode reposicionar seu uso para o tratamento de outras doenças médicas. Neste artigo, revisitaremos alguns aspectos históricos sobre a descoberta do lítio e sua utilização no tratamento das doenças mentais, os seus mecanismos de ação e o potencial para o tratamento e prevenção de transtornos neurodegenerativos, com ênfase na Doença de Alzheimer (DA).

 

Curiosidades históricas

O uso de águas medicinais para tratar doenças humanas pode ser identificado em registros de mais de dois mil anos. O médico grego Sorano de Éfeso, no século 2, recomendava o uso de águas alcalinas para o tratamento da mania. Até o início do século 19, o consumo de águas de determinadas estâncias hidrominerais (como a renomada eau de Vichy) era uma recomendação comum para tratar doenças físicas e mentais, incluindo mania, melancolia, epilepsia, artrite, gota e câncer.

A descoberta do lítio na natureza conta com a participação decisiva de José Bonifácio de Andrada e Silva, o nosso “patriarca da independência”, que se destacou historicamente por suas ações como abolicionista e articulador do movimento de independência do Brasil. Porém, ele tinha interesses ecléticos. Formado em direito, filosofia e matemática, destacou-se como químico-mineralogista e naturalista, defendendo, desde os tempos do império, a necessidade de se adotar a sustentabilidade no uso dos recursos ambientais. José Bonifácio descobriu a petalita, em 1800, na mina de Utö, na Suécia. Esta pedra rica em lítio foi, posteriormente, analisada por Johan August Arfwedson, que trabalhava no laboratório de Berzelius, o que possibilitou a identificação do metal alcalino em 1818.

Constatou-se então que o efeito terapêutico daquelas águas minerais advinha do fato de serem ricas em lítio. Curiosamente, esse avanço médico deveu-se a duas premissas falsas: de que o lítio seria capaz de dissolver cristais de urato no aparelho urinário (as concentrações de lítio necessárias para dissolver cristais de urato em laboratório seriam tóxicas se utilizadas em seres humanos); e que as perturbações mentais, incluindo a psicose maníacodepressiva, estavam associadas ao excesso de ácido úrico no organismo. Sob essas premissas errôneas, Carl Lange, na Dinamarca, e William Hammond, nos Estados Unidos, preconizaram o uso do lítio para o tratamento da mania, a partir de 1870.

O embasamento científico para o uso do lítio no tratamento das doenças mentais começou a ser construído em 1948, pelo psiquiatra australiano John Cade. Ainda sob a hipótese da toxicidade cerebral do ácido úrico, Cade desenhou um experimento controlado que consistia na injeção de urina de pacientes acometidos por doenças mentais ou de indivíduos saudáveis no peritônio de cobaias. Percebeu que a urina dos doentes causava alteração comportamental nos animais de laboratório, reforçando a hipótese de que a toxicidade seria devida à presença de maiores concentrações de ácido úrico na urina dos doentes mentais. Passou então a injetar soluções de ácido úrico no peritônio dos animais, sendo o carbonato de lítio adicionado para aumentar a solubilidade do primeiro, gerando urato de lítio. Percebeu, paradoxalmente, que os animais injetados com as soluções contendo lítio ficaram mais calmos. Essa constatação inesperada permitiu que o pesquisador se desprendesse da hipótese inicial de trabalho e partisse para a investigação dos efeitos tranquilizantes do lítio, o que passou a ser a sua principal linha de pesquisa. Após ingerir ele próprio os sais de lítio para certificar-se da segurança do seu uso em humanos, Cade desenhou um pequeno estudo de intervenção, recrutando alguns dos seus pacientes diagnosticados com mania, melancolia e demência precoce. Os resultados foram tão robustos que Cade passou a hipotetizar que tais doenças seriam causadas por deficiências de lítio. Porém, os efeitos adversos da administração de lítio, em alguns casos causando toxicidade e morte, interromperam o progresso de suas pesquisas.

Nos anos subsequentes, outros pesquisadores com­provaram a eficácia do lítio no tratamento da mania aguda e na profilaxia do TAB. Mas, sendo o lítio um elemento químico de ocorrência natural (portanto, não patenteável), a pesquisa clínica desenvolveu-se sem o aporte da indústria farmacêutica, progredindo de forma mais lenta, sobretudo no estabelecimento dos limites de segurança do seu uso clínico. Tanto é que o lítio foi banido da prática médica norte-americana até a década de 1970, em função dos efeitos adversos. Hoje, apesar da concorrência com outros medicamentos aprovados para as mesmas indicações, o lítio ainda figura como padrão ouro para o tratamento do TAB e como droga de referência entre os estabilizadores do humor.

 

Pesquisa translacional

Apesar do amplo uso clínico durante sete décadas, ainda existem dúvidas sobre os mecanismos biológicos que regem os efeitos do lítio sobre o humor e o comportamento. O lítio é uma droga “suja”, pois age sobre diversas vias de sinalização intracelular, tais como Wnt/β-catenina, adenilato ciclase, telomerase, bifosfato nucleotidase, β-arrestina e ciclo-oxigenase, bem como a ação de receptores GABA e NMDA e a homeostase do cálcio.

Os principais alvos moleculares do lítio são as enzimas inositol-monofosfatase (IMPase) e glicogênio sintase quinase-3beta(GSK3β). Essas enzimas desempenham papéis abrangentes, porém centrais em alguns tipos celulares, modulando direta ou indiretamente processos metabólicos de apoptose, autofagia, remodelagem do citoesqueleto, regulação gênica, ciclo celular, suporte neurotrófico, metabolismo energético, função mitocondrial, estresse oxidativo, resposta inflamatória etc.

Efeitos regulatórios distintos são esperados a depender do tecido-alvo, do tempo de exposição ao lítio e das concentrações de trabalho. Portanto, alguns efeitos biológicos podem ocorrer com concentrações muito menores do que aquelas utilizadas para o tratamento dos transtornos do humor. Os benefícios devem ser contabilizados em função do tempo de exposição, de forma cumulativa. Estudos ecológicos mostram em diversas regiões do mundo uma associação inversa entre as taxas de suicídio e as concentrações de lítio em lençóis freáticos e na água destinada ao consumo humano. Resultados semelhantes têm sido encontrados para as taxas de internações psiquiátricas e as ocorrências relacionadas a atos de violência, assim como para a associação entre lítio ambiental e prevalência de demência. Esses estudos sugerem que a ingestão de lítio em doses mínimas pode resultar em desfechos benéficos no longo prazo.

Lítio e neuroproteção

Evidências do efeito neuroprotetor do lítio advêm de modelos experimentais e estudos de neuroimagem. O uso crônico do lítio em pacientes com TAB associa-se ao aumento do volume da substância cinzenta cerebral e melhora da viabilidade tecidual. Associa-se também a uma menor prevalência de demência, em comparação com pacientes com TAB tratados com outros estabilizadores do humor. Esse benefício parece ser independente dos parâmetros de resposta terapêutica, ou seja, decorre dos efeitos biológicos do lítio sobre sistemas relacionados à preservação da homeostase cerebral.

A inibição da GSK3β pelo lítio exerce efeito duplamente favorável sobre as principais vias patogênicas da DA: a cascata do β-amilóide e a hiperfosforilação da proteína Tau, que levam à formação das placas senis e dos emaranhados neurofibrilares, marcadores patológicos da doença. Além disso, o lítio aumenta a expressão de Bcl-2, uma proteína citoprotetora que auxilia na regeneração de axônios, inibindo a apoptose e favorecendo a remodelagem do citoesqueleto neuronal. Em modelos experimentais, o lítio estimulou a neurogênese cerebral no giro denteado do hipocampo.

Portanto, o efeito protetor do lítio contra mecanismos patogênicos da DA e outras demências parece decorrer de suas propriedades biológicas intrínsecas. A comprovação dessa hipótese, partindo da bancada do laboratório para o ambiente clínico, começou a tomar corpo a partir de estudo que mostrou, de forma controlada, que o uso prolongado de carbonato de lítio em doses sub-terapêuticas foi capaz de atenuar a deterioração cognitivo-funcional e de reduzir a taxa de conversão para demência em uma população de alto risco para este desfecho. Esse efeito clínico foi acompanhado da mudança do perfil de biomarcadores liquóricos da DA.

 

Otimismo e cautela

Não apenas no TAB e na DA, como também em outras doenças que afetam o sistema nervoso, o lítio tem sido considerado como potencialmente benéfico para o tratamento primário e para a atenuação de perdas degenerativas. Há ensaios clínicos em andamento em pacientes com DA, lesão medular, esclerose lateral amiotrófica e doenças de Parkinson e Huntington.

Evidências derivadas de modelos pré-clínicos e clínicos dão suporte à hipótese de que os efeitos neurotróficos e neuroprotetores do lítio ocorrem pela ação sobre múltiplos processos metabólicos celulares relacionados à sobrevivência neuronal, neuroplasticidade, controle transcricional, metabolismo energético e resiliência contra insultos neurotóxicos. Alguns desses mecanismos podem estar representados entre os processos patogênicos centrais de algumas doenças; outros podem representar respostas inespecíficas favoráveis à resiliência neuronal e à resposta neurotrófica.

Naturalmente, o uso clínico do lítio no momento atual do conhecimento deve limitar-se às condições para as quais a sua indicação tenha sido estabelecida com base em evidências científicas – como é o caso do uso do lítio nos transtornos do humor. Para as demais situações, deve-se aguardar o desenvolvimento das pesquisas que, com otimismo, darão subsídio às novas indicações.

 

Referências bibliográficas

1. Aprahamian I, Santos FS, dos Santos B, Talib L, Diniz BS, Radanovic M, Gattaz WF, Forlenza OV. Long-term, low-dose lithium treatment does not impair renal function in the elderly: a 2-year randomized, placebo-controlled trial followed by single-blind extension. J Clin Psychiatry. 2014;75(7):e672-8.

2. De-Paula VJ, Gattaz WF, Forlenza OV. Long-term lithium treatment increases intracellular and extracellular brain-derived neurotrophic factor (BDNF) in cortical and hippocampal neurons at subtherapeutic concentrations. Bipolar Disord. 2016;18(8):692-695.

3. Diniz BS, Machado-Vieira R, Forlenza OV. Lithium and neuroprotection: translational evidence and implications for the treatment of neuropsychiatric disorders. Neuropsychiatr Dis Treat. 2013;9:493-500.

4. Forlenza OV, Aprahamian I, de Paula VJ, Hajek T. Lithium, a Therapy for AD: Current Evidence from Clinical Trials of Neurodegenerative Disorders. Curr Alzheimer Res. 2016;13(8):879-86.

5. Forlenza OV, De-Paula VJ, Diniz BS. Neuroprotective effects of lithium: implications for the treatment of Alzheimer’s disease and related neurodegenerative disorders. ACS Chem Neurosci. 2014;5(6):443-50.

6. Forlenza OV, de Paula VJ, Machado-Vieira R, Diniz BS, Gattaz WF. Does lithium prevent Alzheimer’s disease? Drugs Aging. 2012;29(5):335-42.

7. Forlenza OV, Diniz BS, Radanovic M, Santos FS, Talib LL, Gattaz WF. Disease-modifying properties of long-term lithium treatment for amnestic mild cognitive impairment: randomised controlled trial. Br J Psychiatry. 2011;198(5):351-6.

8. Nunes PV, Forlenza OV, Gattaz WF. Lithium and risk for Alzheimer’s disease in elderly patients with bipolar disorder. Br J Psychiatry. 2007;190:359-60.

 

* Professor associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

 


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