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CONJUNTURA (pág. 12)
Aids: novos e velhos desafios


DEBATE (pág. 16)
O teto dos gastos públicos é realmente necessário?


HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 23)
O outro lado das guerras


SINTONIA (pág. 26)
A sétima arte e humanização da Medicina


GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência


PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica


HOBBY DE MÉDICO (págs. 34 a 37)
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Osesp


GOURMET (Pág. 42)
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FOTOPOESIA (pág. 48)
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Edição 78 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2017

HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 23)

O outro lado das guerras

 José Maria Orlando*

Não há dúvida de que as guerras estão, invariavelmente, associadas às grandes desgraças da humanidade por conta de todos os infortúnios que as acompanham. A proposta, no entanto, é explorar um lado menos visível da história desses conflitos armados, sempre carregados de tantos sofrimentos, dores indizíveis e profundo terror, e que vêm assombrando os nossos piores pesadelos, ao longo dos séculos. Contudo, mesmo contrariando o senso comum, é surpreendente identificar eventuais benefícios para a própria humanidade na forma de subprodutos positivos derivados do enorme caos e da tragédia humana provocada pelas guerras.

Na Antiguidade – diante da ausência de escolas médicas formais, cursos de imersão e nada que pudesse lembrar os modernos centros de simulação capazes de reproduzir com surpreendente fidelidade vários dos cenários enfrentados pelos profissionais de saúde na implacável realidade de nossos serviços de emergência –, Hipócrates (460—370 a.C.) era taxativo ao afirmar: “se você quer aprender Medicina... vá para a guerra”. Afinal, qual campo de estágio poderia ser mais apropriado para oferecer treinamento intensivo do que o caos sangrento de um campo de batalha? Naturalmente, não era uma atividade isenta de riscos para os próprios médicos militares, embora, de forma geral, eles fossem quase sempre poupados de participar de atividades que os colocassem sob maior risco, onde a chance de serem feridos ou mortos seria muito maior.

Ao longo dos séculos, continuou sendo dessa maneira que afloraram algumas descobertas científicas em vários campos do conhecimento e, em especial, na ciência médica. É o caso do aprimoramento de algumas técnicas empregadas pela cirurgia vascular, como a sutura e reconstrução de vasos sanguíneos lesados. Em muitas outras situações os campos de batalha transformam-se em imensos laboratórios a céu aberto e, assim, permitem testar, em grande escala, novos procedimentos e medicamentos. Como exemplo, pode-se citar o emprego dos raios-X, da anestesia inalatória e da própria penicilina. Esta última mudou radicalmente a sobrevida dos soldados vítimas de ferimentos infectados durante a 2ª Guerra Mundial (1939-45).

Até pouco mais de 100 anos atrás, as guerras matavam, sobretudo, por conta das infecções que complicavam as feridas. As cirurgias eram muito limitadas por falta de anestesia e havia também as muitas doenças e epidemias (malária, tifo, cólera, varíola etc.), que comprometiam a saúde e, frequentemente, matavam não só os militares, mas também a própria população civil envolvida nos conflitos. Morria-se, portanto, muito mais pelas doenças do que em decorrência de causas diretamente associadas aos ferimentos de batalha, produzidos pelos diferentes tipos de armamentos.

Esse cenário só começou a se modificar a partir da 1ª Guerra Mundial, não apenas em função do desenvolvimento de novas opções de diagnóstico e tratamento – inclusive pelo advento dos antibióticos, cirurgias mais complexas que passaram a ser conduzidas com maior segurança e conforto sob efeito de anestesia, melhoria das condições sanitárias e da prevenção de muitas doenças graças às vacinas –, como também em decorrência de novas e mais poderosas armas, com elevadíssimo poder letal. As metralhadoras são um bom exemplo, ao entrarem em cena no final do século 19. Foi somente, então, que os armamentos tornaram-se capazes de matar mais do que as doenças.

Choque hemorrágico

Também durante a 1ª Guerra Mundial conseguiu-se enfrentar, de modo mais efetivo, o choque hemorrágico, que levava o soldado com um ferimento hemorrágico grave a evoluir inexoravelmente para a morte. No final desse conflito, já era possível resgatar um soldado ferido e impedir que ele morresse pelo sangramento, mediante administração de soros por via endovenosa. De qualquer modo, reverter transitoriamente o estado de choque hemorrágico, apenas corrigindo a queda na pressão sanguínea, não era garantia de que o soldado iria sobreviver. Afinal, ele havia perdido muito sangue e não bastava administrar soro, era preciso transfundir sangue, pois, do contrário, não era possível corrigir a deficiência no transporte de oxigênio para os diversos tecidos corporais.

Apesar de a comunidade médica estar convencida, àquela altura, de que a transfusão era indispensável frente às grandes hemorragias, a logística para realização delas em pleno campo de batalha era extremamente complexa. Foi durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) que se deu o passo decisivo para superar esse obstáculo, mediante implantação de postos avançados de transfusão e estímulo à doação, inclusive entre os civis.

Mas, um novo drama viria logo em seguida para desafiar as equipes médicas, pois, uma vez instalado, o choque hemorrágico que não fosse corrigido prontamente provocaria um grande prejuízo ao funcionamento de diversos órgãos e tecidos e, dentre eles, os rins. Surgia, então, a insuficiência renal aguda como a responsável por matar os soldados feridos que haviam, inicialmente, sobrevivido ao choque. A Guerra da Coréia, no início da década de 50, permitiu a realização das primeiras hemodiálises num cenário de guerra, como forma de substituir temporariamente o mau funcionamento dos rins.

Quando o teatro da guerra deslocou-se para o Vietnã, durante as décadas de 60 e 70, a principal contribuição médica militar foi obtida no tratamento da insuficiência respiratória aguda pós-trauma que, à época, ficou conhecida como pulmão de choque ou pulmão úmido, e hoje é designada por Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo.

Porém, talvez, uma das principais contribuições oferecidas pela medicina militar tenha sido o desenvolvimento do sistema de triagem médica, que continua a vigorar ainda hoje em nossos prontos-socorros, conhecidos como protocolos de avaliação de risco (em que os pacientes são classificados por cores). Esse sistema teve início, de forma mais sistematizada, graças ao trabalho pioneiro de Dominique-Jean Larrey, o famoso cirurgião-chefe dos exércitos de Napoleão Bonaparte, ainda no final do século 18.

Foi Larrey, também, o primeiro a se preocupar em oferecer a possibilidade concreta de resgatar os soldados feridos do campo de batalha. Até então, a maioria das vítimas era simplesmente abandonada à própria sorte. Surgiam, assim, as primeiras ambulâncias (ambulance volante). Mais à frente, por volta de 1860, durante a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, as ambulâncias cumpriram papel de destaque na evacuação de um grande número de feridos.

No entanto, a depender do cenário onde se desenvolviam as lutas, da topografia do terreno e da gravidade do caso, impunha-se a necessidade de um transporte mais rápido. Aparentemente, os balões fizeram sua estreia como transporte aero-médico durante a Guerra Franco-Prussiana (1870). Durante a 1ª Guerra Mundial começaram a ser feitas as tentativas pioneiras de uso dos aviões para transporte dos feridos graves. Os helicópteros também foram ganhando importância a partir da 2ª Guerra Mundial, e, àquela época, os aviões já se mostravam mais bem adaptados para esse tipo de missão. Mas, foi a partir da Guerra da Coreia que os helicópteros foram, de fato, consagrados como a forma mais versátil e ágil para resgatar soldados lutando em qualquer tipo de terreno, principalmente em meio às florestas do sudeste asiático, inclusive, poucos anos mais tarde, também no Vietnã.

Porém, de nada adianta a rapidez do resgate se o hospital que irá receber o paciente não estiver preparado para cumprir bem sua missão. Foi durante a própria Guerra da Secessão que começaram a surgir alguns hospitais mais preparados para cumprir sua finalidade específica. Os chamados General Hospitals foram, aos poucos, espalhando-se pelo território norte-americano. Alguns deles eram mais bem planejados, e construídos no formato de pavilhões independentes, o que permitia até mesmo agrupar os pacientes pelo tipo de doença que apresentavam, reduzindo, assim, as chances de contaminações cruzadas, embora naqueles tempos nada se soubesse ainda sobre os germes como os responsáveis pelas infecções.


As primeiras ambulâncias surgiram nos exércitos de Napoleão bonaparte, mas na Guerra da Coreia os helicópteros se consagraram como a forma mais versátil e ágil para resgatar soldados

A partir da 2ª Guerra, principalmente na Coreia, surgiram hospitais de campanha mais bem planejados. Nasciam, assim, os primeiros Mobile Army Surgical Hospitals (MASH) – ou hospitais cirúrgicos militares móveis –, que podiam ser montados diretamente na retaguarda dos conflitos.

Eis aqui, um pequeno aperitivo do material reunido em nosso livro. Afinal, a luta da Medicina contra a toda poderosa morte é, sem dúvida, totalmente desigual, mas, ainda assim, uma luta indeclinável.

*Médico intensivista, ex-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira e autor do livro Vencendo a morte – como as guerras fizeram a Medicina evoluir?


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