CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Peggy Cohen-Kettenis
CRÔNICA (pág. 10)
Tufik Bauab*
EM FOCO (pág. 12)
Informação científica
ESPECIAL (pág. 16)
Por que as cotas raciais são importantes? - Aureliano Biancarelli
CONJUNTURA (pág. 24)
Qualidade de vida
CARTAS E NOTAS (Pág. 27)
Cremesp facilita localização de pessoas desaparecidas
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 28)
Patrimônio histórico
GIRAMUNDO (Pág. 32 e 33)
Avanços da ciência
PONTO COM (Pág. 34 e 35)
Mundo digital & tecnologia científica
SINTONIA (Pág. 36)
Literatura & Medicina
TURISMO (págs. 40 a 43)
Aurora boreal
CULTURA (págs. 44 a 47)
O Rubaiyat de Omar Khayyam
FOTOPOESIA (pág. 48)
Ano Novo
GALERIA DE FOTOS
ESPECIAL (pág. 16)
Por que as cotas raciais são importantes? - Aureliano Biancarelli
Por que as cotas raciais são importantes?
Aureliano Biancarelli*
A Lei de Cotas está provocando uma mudança de cor e de status no principal espaço de poder e de participação política do País, a universidade pública. Uma multidão, que já passa de 200 mil cotistas, está fazendo uma revolução silenciosa, só perturbada por protestos contra escolas paulistas que ainda resistem a abrir suas portas, entre elas a Faculdade de Medicina da USP. A universidade informa que vem fazendo mudanças graduais que privilegiam o mérito. “Mas o mérito só se dá quando se parte de uma igualdade de oportunidades”, diz Mauro Gomes Aranha de Lima, presidente do Cremesp.
A universidade pública brasileira está ficando mais negra e menos classe média. Por trás desse movimento de cor e de poder estão instituições públicas, grupos militantes negros e coletivos de alunos que, como um aríete, forçam os portões da universidade. A conquista mais expressiva foi a aprovação da Lei Federal 12.711, de agosto de 2012. Saudada como Lei de Cotas, ela passou a reservar porcentagens crescentes de vagas para alunos negros, pardos, indígenas, do ensino público e de baixa renda, até o teto de 50% do total, atingido agora no vestibular de 2016.
Desde o último vestibular, portanto, as 63 universidades federais reservam metade de suas vagas para alunos que fizeram todo o ensino médio em escola pública. Uma metade dessa metade é exclusiva para negros – pretos e pardos – e índios. Embora algumas faculdades tenham políticas de ações afirmativas desde o início dos anos 2000, a lei significou uma mudança nunca imaginada, em tão pouco tempo, no perfil do universitário brasileiro.
De acordo com o Censo da Educação Superior de 2014, naquele ano um total de 1.734,1 mil estudantes se autodeclararam negros no ensino superior público e privado. Em 2010, eram 684,5 mil, um salto de 153,3% nesse período. Até o primeiro vestibular de 2016, estima-se que mais de 200 mil alunos entraram nas federais pela Lei de Cotas. Os números não são fechados e não incluem as 38 universidades estaduais – que não estão sujeitas à Lei de Cotas. Estima-se que 30 delas tenham políticas inclusivas próprias.
Profissionais de diferentes áreas e correntes de pensamentos veem na política de cotas uma das ações afirmativas mais eficazes na reparação da escravização dos negros por séculos. “Trata-se de uma revolução no ensino superior brasileiro. A universidade, que é o principal meio de mobilidade e ascensão social, era basicamente um privilégio de quem já tinha dinheiro”, diz João Feres Júnior, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), com sede na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Feres e seus colegas do Gemaa afirmam que as instituições brasileiras que resistem às cotas cometem um erro histórico, pois mesmo as universidades estrangeiras mais bem avaliadas do mundo, como Harvard, Princenton e Berkeley, “são árduas defensoras” dessa política.
O Cremesp não tem uma posição estabelecida em plenário sobre as cotas estudantis, mas seu presidente, Mauro Aranha, defende, com empenho, a implantação e manutenção dessa política. “As ações afirmativas são importantes porque, ainda que de forma parcial, corrigem uma injustiça social trans-histórica”, diz. “Além da questão de raça, tem a ver com a forma como os negros foram colocados à margem do progresso e da sociedade. A penúria sócio-financeira alija gerações de uma mesma família do acesso ao conhecimento e ao trabalho.” A questão da cota – diz Aranha – “não só contempla a correção de uma injustiça histórica, de dificuldade de acesso ao conhecimento e ao trabalho, como propicia uma miscigenação cultural que enriquece a universidade”.
O argumento da meritocracia alegado por algumas instituições para recusar a política de cotas não se sustenta, diz Mauro Aranha. “Grandes universidades, como a USP e a Unicamp, não podem falar em termos de meritocracia; só se pode avaliar o mérito quando há igualdade de oportunidades”, argumenta. “Infelizmente, algumas das nossas universidades públicas estão decadentes no seu pensamento ético e social. E se não repensarem sua inserção na sociedade, serão superadas pelas universidades privadas”, adverte. “Se ficarem no pedestal, como sempre estiveram, vai restar muitopouco para elas serem úteis ao País”, afirma Aranha.
Para o presidente do Cremesp, “os cursos mais tradicionais de Medicina no Brasil formam médicos de excelência, mas não necessariamente médicos para o Brasil”. E acrescenta: “aquilo que o paciente procura não é a imagem do médico, mas sim a capacidade do médico de cuidar dele como doente e como pessoa. Isso, então, em pouco tempo será revertido. A política de cotas vai permitir isso, pois o preconceito contra os médicos negros é fruto também de uma tradição que não os incluiu na Medicina. É resultado de uma cultura que os alijou. Não é responsabilidade apenas da Medicina, que é uma dentre as muitas dimensões culturais do País”, pondera.
Um país que discrimina não tem futuro
O debate sobre cotas envolve muito mais que vagas para negros e pobres que não conseguem entrar nas universidades públicas. “É um debate sobre a possibilidade de desenvolvimento do País, sobre o lugar que certos grupos sociais ocupam dentro da política e da economia brasileira, porque a universidade é um espaço de poder”, diz o advogado e professor universitário Silvio Almeida. Pós-doutor em Direito pela USP, filósofo, negro e presidente do Instituto Luiz Gama, ele participa do debate sobre ações afirmativas desde os anos 1990. “É um debate que interessa a todos, porque se trata do desenvolvimento do Brasil enquanto nação”, afirma. “Não conheço país que tenha criado um projeto nacional de desenvolvimento e que discrimine mais de 50% de sua população, que é a nossa população negra”, diz.
Uma política de direitos iguais deveria começar muito antes do funil do vestibular. Os candidatos que chegam para o exame mostram uma composição muito mais branca e de classe média, indicando que a maioria de negros não chegou a completar o ensino médio. No vestibular da Fuvest de 2016, dos 142,6 mil inscritos, 73,3% eram brancos, 16,8% pardos e 4,4% pretos – ou seja, 21,2% negros, além de 5,3% amarelos. Na composição de raça ou cor da população paulista, segundo o IBGE, 34,6% se autodeclararam negros.
USP se fundamenta no mérito e diz ampliar acesso
Para os que militam pela igualdade de oportunidades na universidade, a USP é o principal campo de batalha. “As faculdades públicas de São Paulo, especialmente a USP, são as que têm caráter mais elitista. Na Medicina, o ensino é distante da comunidade pobre e negra. Seus cursos são os que têm menos presença de negros”, diz Clayton Borges, membro do Coletivo Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negros Classe Trabalhadora).
A direção da USP não vê dessa forma. Segundo a reitoria, a instituição debate as cotas desde meados do ano 2000 e, em 2005, o Conselho Universitário aprovou a criação do Programa de Inclusão Social (Inclusp), “baseado no mérito e voltado a oriundos de escolas públicas”. “O objetivo é o de ampliar as probabilidades de acesso dos estudantes egressos da escola pública e apoiar, com ações específicas, a permanência deles no curso superior”, informa a reitoria. “O programa oferece bônus na nota da primeira e segunda fase do vestibular da Fuvest a oriundos de escolas públicas e tem o mérito como pressuposto principal.” De acordo com a Reitoria, o bônus pode chegar a 25% da nota.
Criticada por insistir em um programa de bônus – que continua valendo –, a USP passou, em 2016, a oferecer vagas para aqueles que se candidatem pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), gerenciado pelo MEC, no qual instituições públicas oferecem vagas para candidatos participantes do Enem. No vestibular de 2017, das 11.072 vagas abertas pela USP, 21,1% são reservadas ao Sisu e as demais à Fuvest. Das 2.338 vagas para o Sisu, 50% se destinam a alunos do ensino médio público, 25% para pretos, pardos e indígenas (PPI) autodeclarados, e os outros 25% para a ampla concorrência. Ou seja, no vestibular de 2017 estão reservadas, na USP, 1.169 vagas para alunos de escolas públicas e 585 para negros, ou seja, 10,6% do total para o primeiro grupo e 5,3% para o segundo.
Durante entrevista em julho passado, o pró-reitor de Graduação, Antonio Carlos Hernandes, disse que “qualquer alteração que se faz no processo de ingresso na USP tem um impacto muito grande em toda a sociedade. Por isso, estamos fazendo a implantação das alterações gradualmente, de maneira que tanto a comunidade interna quanto a externa possam entender e discutir o processo de mudança pelo qual está passando a universidade”.
Segundo a Reitoria, das 42 Unidades de Ensino e Pesquisa da universidade, “apenas três faculdades” não disponibilizam vagas para o Sisu, uma delas é a Faculdade de Medicina. As outras são a Escola de Engenharia de São Carlos e o Instituto de Física. Dos 298 matriculados na Medicina depois da última chamada da Fuvest 2016, 79,9% eram brancos, 0,7% pretos, 7,4% pardos, 12,1% amarelos. Ou seja, 2 pretos e 22 pardos. Entre os 298 matriculados, 73,2% fizeram ensino médio em escola particular.
A diretoria da Faculdade de Medicina informou que “esse é um assunto que está em ampla discussão, e a definição cabe à Reitoria da USP e ao Conselho Universitário. A Faculdade de Medicina da USP seguirá a política adotada”.
Unicamp defende bônus
A Unicamp é outra universidade criticada por não ter aderido a um programa de cotas e sim de bônus. Segundo a direção da escola, seu sistema tem trazido “resultados melhores que qualquer outro programa de cotas”. Trata-se do Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social (Paais), aprovado em 2004 pelo Conselho Universitário. No vestibular deste ano, a Unicamp registrou 22,4% de matriculados que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas (PPIs), ou seja, 726 estudantes de um total de 3.243 ingressantes. Entre os que entraram em Medicina, 65,5% cursaram escola pública e 31% se autodeclararam PPIs. “Com a reserva de vagas, os números seriam menores”, defende a escola. O curso de Ciências Médicas da Unicamp oferece 110 vagas. Ainda segundo a escola, estudos de desempenho acadêmico dos estudantes bonificados pelo Paais têm demonstrado que eles “apresentam resultados iguais ou melhores que os demais estudantes”.
Unesp reserva vagas como as federais
A Unesp foi a única estadual paulista que adotou a Lei de Cotas federal já em 2013. No vestibular de 2015, 50% de seus alunos vinham de escolas públicas e metade deles eram pretos, pardos e índios (PPIs). Até o início do programa, em 2013, os PPIs em Medicina eram 14%. Das 90 vagas do curso médico, os negros passaram a ocupar 22 vagas em 2015 e, em 2016, são 31, ou 35%.
“Estamos aprendendo com essa medida”, diz Jacqueline Teixeira Caramori, coordenadora do curso de Medicina da Unesp. “Ainda não temos estudos detalhados, mas não estamos vendo diferença entre os cotistas e aqueles que têm entrado pelo sistema universal. Estão tendo o mesmo desempenho e o mesmo desenvolvimento acadêmico”, diz a coordenadora.
Coletivos concentram luta em São Paulo
Os grupos mais ativos na defesa das cotas atuam no Estado de São Paulo, onde estão escolas que resistem a essa política. Segundo a lei, as reservas raciais devem ser proporcionais às características étnicas da população do Estado em questão. De acordo com o Censo de 2010 do IBGE, 63,9% dos paulistas se autodeclaram brancos, 29,1% pardos e 5,5% pretos (somando 34,6% de negros), 0,1% indígena e 1,4% amarelo.
A Frente Pró-Cotas de São Paulo defende projeto semelhante. Vários coletivos que a integram foram criados desde os anos 1990. O mais recente deles, “Por que a USP não tem cotas?”, foi criado em 2016. Há outros como o Núcleo de Consciência Negra da USP e o Uneafro. “No ano passado surgiu o movimento ‘ocupação preta’, que entrava nas salas de aula e discutia as cotas e outras questões relacionadas ao racismo”, diz Thatiane Lima, integrante do Núcleo de Consciência Negra da USP. Estudante do sexto ano do curso de Engenharia de Materiais da Escola Politécnica da USP, ela diz que, na grande maioria das matérias, é a única negra da sala.
Outro coletivo recente é o NegreX, de âmbito nacional, voltado para demandas dos estudantes negros de Medicina. “Percebemos que, depois de três anos da Lei de Cotas, não tínhamos visibilidade alguma, não tínhamos espaço nem informações, apenas pessoas brancas tomavam as decisões”, diz Gregory Fernandes, 22 anos, membro do Coletivo NegreX e estudante de Medicina do quinto ano da UFMG. O Coletivo NegreX surgiu no Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina (Cobrem), realizado em Belo Horizonte, em janeiro de 2015. “O Cobrem tinha mais de 400 participantes e, dentre esses, apenas 12 pessoas pretas, e isso, mostrou a necessidade da criação de um Coletivo Negro dentro da medicina”, relata.
A partir daí foram criados núcleos em vários Estados reunindo os estudantes de medicina negros de diversas universidades, em defesa da educação de qualidade para todos, na luta por melhorias das condições de acesso e permanência dos cotistas raciais, “além de trazer visibilidade à fraude nos programas de ações afirmativas nas universidades.”
Faixas na Dr. Arnaldo
Em São Paulo, a Faculdade de Medicina da USP se tornou o principal alvo dos protestos. Nos seus encontros, os líderes lembram que, dentre os 298 alunos que entraram na Medicina da USP em 2016, dois eram pretos, 36 pardos e nenhum indígena. Uma das últimas manifestações ocorreu no dia 10 de agosto passado, quando cerca de 100 alunos estenderam faixas diante da estátua do fundador da Faculdade de Medicina, Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), na avenida que leva seu nome. Uma delas dizia:“A USP não tem cotas porque a Casa Grande surta quando a Senzala vira médica”.
A mobilização, organizada pelo Coletivo NegreX, teve participação de militantes da Uneafro, Educafro, Movimento dos Sem Universidades, Núcleo de Consciência Negra da USP e do Coletivo “Por que a USP não tem cotas?”.
A Uneafro também nasceu em um protesto diante da Faculdade de Medicina, em 2009, ano que a USP comemorava 75 anos. “Naquele ano, nenhum aluno negro foi aprovado na Medicina da USP; por isso, escolhemos suas portas para protestar e lançar o movimento”, diz Clayton Borges, membro do Coletivo Uneafro e advogado formado em 2000 pela Universidade Federal de Minas (UFMG). “Na minha turma, só tinham dois negros”, relata.
Além do debate e combate ao racismo, o propósito da Uneafro é oferecer cursinho preparatório gratuito para o Enem e vestibulares, o que significa outra ferramenta para “forçar” as portas da universidade. Os cursinhos populares da Uneafro oferecem 1,2 mil vagas nas 23 unidades que dispõem no Estado de São Paulo, além de cursos em outros quatro Estados. Eles funcionam como um mutirão. Os espaços são cedidos por escolas, associações de bairro e sindicatos. A alimentação é feita em grupo, os professores e coordenadores são voluntários e o material didático é conseguido por meio de doações. “Estamos abertos a toda classe trabalhadora”, diz Borges. A procura pelos cursinhos é tão grande que o Coletivo aproveita para lembrar que está precisando de professores voluntários.
“Questionaram se eu entraria num hospital ‘com esse cabelo’”
Suzane Pereira da Silva é negra, tem 30 anos, mora em Itaquera, Zona Leste de São Paulo e é militante do Coletivo NegreX. Em 2012, entrou na primeira turma do curso de Medicina da Faculdade Santa Marcelina, com bolsa integral de cotas raciais (negros e indígenas) pelo Programa Universidade Para Todos (ProUni). O ProUni já ofereceu mais de 1,9 milhão de bolsas em diferentes áreas acadêmicas, 70% delas integrais. É preciso possuir renda familiar mensal per capita inferior a 1,5 salário mínimo para concorrer à bolsa integral. Suzane está no 5º ano do curso médico, pesquisa o tema Saúde da População Negra, e pretende se especializar em Medicina de Família e Comunidade. Abaixo, trechos do seu relato:
“Sou a primeira de minha família a ingressar no ensino superior. Na minha infância e adolescência não sonhava ser médica, achava que Medicina era um curso para pessoas brancas e ricas. E, infelizmente, era verdade: antes das cotas raciais quase não havia negras e negros na Medicina.
Meus pais fizeram o antigo primário, minha mãe era auxiliar de limpeza, meu finado pai foi metalúrgico e cobrador de ônibus. Meu primeiro emprego, aos 13 anos, foi como babá. E mesmo estudando 16 horas por dia para o Enem, creio que esse seria meu futuro se não houvesse as ações afirmativas.
As pessoas brancas das classes média e alta precisam reconhecer seus privilégios. Privilégio de entrar na faculdade de Medicina e não ter que ouvir que você “não tem cara de médica”. Privilégio de não ter passado fome na infância, de não ser tratada como projeto de empregada doméstica, simplesmente por ser negra. De não ter que alisar o cabelo para se adaptar às exigências do empregador. Privilégio de ter sobrevivido a uma polícia que mata jovens negros.
Porque privilégio é se dizer contra as cotas raciais argumentando que “somos todos iguais”, quando é evidente que um abismo histórico segrega a população negra e indígena. Cotas são direitos conquistados. E é preciso muito mais. É urgente coibir as fraudes e conquistar políticas mais efetivas de permanência estudantil, além de ações afirmativas para inserir a população negra na pós-graduação e no mercado de trabalho.
E não podemos tolerar o racismo dentro da Medicina. Recentemente, a ginecologista e obstetra negra americana, Tamika Cross, foi impedida de prestar socorro a uma pessoa num voo da companhia Delta Airlines. O fato gerou revolta mundial e deu início à campanha #WhatADoctorLooksLike (a cara de um médico). Situações assim também ocorrem no Brasil. No ano passado, a médica Thatiane Santos da Silva foi discriminada por usar dreads, em Santa Helena (PR). No mesmo ano, a anestesista Carolina Bernardes foi ofendida por um obstetra, em Barretos (SP). Em julho de 2016, Júlia Rocha, médica de Família e Comunidade, sofreu ataques racistas na internet após rebater deboche de um médico paulista à linguagem de um paciente. Meses antes aconteceu comigo: numa foto em que eu segurava o cartaz com a citação “A Casa Grande surta quando a Senzala vira médica”, questionaram se eu entraria num hospital “com esse cabelo”.
Precisamos combater as diversas faces do racismo na Saúde e estamos mobilizados para fazê-lo. O Coletivo NegreX esteve presente no Simpósio Internacional de Saúde da População Negra, realizado em novembro deste ano, em Porto Alegre. Estamos cientes de que cerca de 70% dos que usam o SUS são negros. E que agravos crônicos como hipertensão e diabetes mellitus, além de desfechos como as mortalidades infantil e materna, são muito mais frequentes na população negra do que na branca. Mas o ensino e a maioria das pesquisas e protocolos médicos não levam em consideração a Saúde da População Negra. Espero ver o Cremesp incorporando essa pauta.
É preciso abolir o racismo, porque só assim a Medicina poderá, de fato, atender aos interesses do conjunto da sociedade. Que haja cada vez mais médicas(os) negras(os). E mais campanhas como a feita pelo Cremesp, com médicos negros em destaque. Mas precisamos ir além do marketing.”
“Cadê o dr. Cleber?”
O médico Cleber Firmino é negro, tem 35 anos e uma história que envolve falta de oportunidades e racismo. Nos vestibulares que prestou em Medicina, em 2000 e 2001, só passou em escola privada, cara demais para ele. Ainda não havia a política de cotas nas escolas públicas, e ele se valeu de um projeto de bolsa de estudos na Escola Latino Americana de Medicina de Cuba, destinada a estrangeiros e reconhecida por seu trabalho em Medicina Comunitária e da Família. Voltou graduado em 2008, revalidou o diploma e fez pós-graduação em Saúde Mental. Trabalha na rede pública da Saúde na Grande São Paulo. Abaixo, algumas de suas observações:
“As pessoas vão a um consultório e imaginam que encontrarão um branco, mas, de repente, se deparam com um preto; é claro que vão estranhar. Nem meus colegas, nem a própria população, esperam encontrar um médico negro. A pessoa abre a ficha no PS da Psiquiatria, onde atendo, e pede para passar comigo: ‘já ouvi dizer que o dr. Cleber é bom, e vim procurá-lo’, diz na recepção. Mas fica surpresa quando vê que sou um negro. Ou pergunta, quando eu abro a porta: ‘cadê o dr. Cleber?’. Porque, na cabeça dela, quando você imagina um médico perfeito, ele não é como eu sou, fisicamente.”
“Eu saio para jantar, paro o carro e dou a chave ao manobrista. Vem a pessoa do carro de trás e me passa sua chave, achando que sou o manobrista. É um episódio comum. Se você vê uma construção e lá estão seis negros e dois brancos trabalhando, você não estranha. Mas se vê um advogado ou advogado negro vai estranhar. O negro de classe média alta não é bem aceito em qualquer lugar, e isso não é apenas na Medicina.”
*Jornalista.