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Pierre Lévy: Medicina & Internet


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Edição 24 - Julho/Agosto/Setembro de 2003

ENTREVISTA

Pierre Lévy: Medicina & Internet

“A virtualização é a especialidade do ser humano”

Pierre Lévy

Pierre Lévy é um pensador dos movimentos da tecnociência na atualidade. Nascido em Tunis, formado em História das Ciências, Sociologia e Filosofia, tem vasta experiência em sistemas de informação inteligentes. Coordena a cátedra de pesquisa “Tecnologia e Transferência de Saberes: Os Fenômenos de Inteligência Coletiva”, na Universidade de Ottawa, no Canadá, na qual pesquisadores de várias partes do mundo reúnem experiências sobre redes de conhecimentos e cidades virtuais. Tem várias obras publicadas sobre esses assuntos, algumas traduzidas em mais de 20 países, e é freqüentemente convidado a dar palestras pelo mundo. Lévy também participou de trabalhos para a “Universidade de Paris – VIII”, cujo objetivo era desenvolver sistemas de reconhecimento do saber para combater a exclusão social, o desemprego e viabilizar a alfabetização digital. Entusiasta do papel do computador e da Internet como fenômenos de evolução da humanidade, faz antecipações visionárias sobre o futuro. Nesta entrevista, filosofa sobre a concepção de sistemas de informação inteligentes, política de informação e, também, do papel dos computadores e da Internet na Medicina.

SER MÉDICO. O senhor disse em seu livro “O que é o virtual?” que vivemos um processo de transformação de um modo de ser para outro. O que seria este outro?
PIERRE LÉVY. A “virtualização” é um pouco a especialidade do ser humano. O que diferencia os humanos dos outros animais é a linguagem, que permite existir de outra forma que não apenas no presente. Com ela podemos contar histórias, nos lembrar do passado, projetar o futuro e combinar coisas que não existem. É esta capacidade que nos torna mais inteligentes que os animais. É também graças à linguagem que temos formas de cooperação mais eficazes que as dos animais sociais como as formigas e as abelhas, que também compõem uma espécie de inteligência coletiva como nós. A grande diferença é que esses animais sociais não têm a história de sua cooperação. Um formigueiro se comporta sempre da mesma maneira, não há evolução, ao passo que a humanidade tem uma evolução cultural. E esse processo de “virtua-lização” é parte da evolução cultural. Num primeiro momento há a linguagem, em seguida inventa-se a escrita, depois a tipografia, os meios de comunicação eletrônicos e hoje estamos na Era da Internet. Mas a cada grande mutação de técnicas de comunicação há sempre um aumento do poder da linguagem, ou seja, do poder da “virtualização”.

SER. E este processo de um modo de ser para outro? Como podemos chegar a isso? No que vai se transformar o ser humano?
LÉVY. Não é exatamente um outro modo de ser. O fato de caminharmos mais em direção ao “virtual” não significa que caminhemos menos no sentido do “atual”, pelo contrário, ambos são complementares. Por exemplo, mesmo se a ciência evolui num sentido cada vez mais abstrato e complexo, ela permite construir coisas absolutamente reais e que facilitam a vida cotidiana. As duas direções são tomadas concomitantemente. Creio que vamos viver transformações de civilização muito importantes. Os antigos romanos, por exemplo, não podiam imaginar os automóveis, os aviões, as centrais nucleares, o telefone, a televisão e mesmo nossas instituições sociais e políticas. Para os antigos romanos, a escravidão era normal; hoje é proibida em todos os lugares. Portanto, há uma evolução moral e não somente uma evolução tecnológica. Temos tanta dificuldade em imaginar uma civilização futura quanto tinham os antigos romanos em imaginar a atual. O que eu digo, há bastante tempo, é que o mais importante que podemos fazer com as novas técnicas de comunicação é aumentar a inteligência coletiva. Essa perspectiva não se opõe, é claro, a aumentar a inteligência individual – visto que ambas caminham muito bem juntas. Mas se opõe à inteligência artificial, o que podemos fazer de melhor com os computadores não é que eles se pareçam conosco, mas que sejam úteis para aumentar nosso potencial cognitivo individual e coletivo, para que melhoremos a memória, a capacidade de percepção e os instrumentos de coordenação entre nós.

SER. Como a Internet melhoraria a inteligência coletiva na Medicina?
LÉVY. A Internet é um extraordinário meio de formação permanente, os médicos podem manter-se atualizados sobre as últimas pesquisas e participar de fóruns de discussão e trocar conselhos práticos sobre pacientes que desenvolvem a mesma doença. Nos dias de hoje, podemos observar que quando há novas epidemias, como a SARS, todos os pesquisadores trabalham juntos e, assim, a decodificação do gene do novo vírus caminha a passos rápidos. Todos podem partilhar informações para tentar encontrar novas formas de combater o vírus. Há uma melhor capacidade de mobilização coletiva em relação a novos problemas, mas também para resolver os antigos. Há uma relação bastante estreita entre a saúde pública e a inteligên-cia coletiva. Todos sabem que há melhores condições de saúde entre pessoas que têm uma boa educação, um bom capital social, isto é, que têm maior disponibilidade de informação e de técnicas de comunicação. É um trunfo para a melhoria da saúde pública. Mas não é colocando computadores à disposição das pessoas que vamos resolver o problema, é preciso alfabeti-zá-las, lutar contra a pobreza etc.

SER.Uma grande discussão hoje diz respeito à tecnologia. Para muitos, a relação médico-paciente está sendo prejudicada porque os médicos dariam muita importância aos exames e estariam perdendo um pouco da sensibilidade necessária no trato com seres humanos. Fala-se também que a Internet separa as pessoas.
LÉVY. Esse assunto não é a minha especialidade, mas creio que a primeira preocupação que um médico deve ter é com a saúde das pessoas. Então, é preciso verificar se este apelo, cada vez mais freqüente, aos exames, aos equipamentos tecnológicos etc, tem um efeito positivo, indiferente ou negativo em relação à saúde. Se eu fosse médico, todas as minhas avaliações teriam por único objetivo a melhoria da saúde dos pacientes. Mas sabemos que entre todos os fatores que contribuem à saúde, os das relações sociais são muito importantes, daí o fato de ter citado a importância do “capital social”. O capital social é o número e a qua-lidade das relações que temos com outras pessoas. Talvez o que as pessoas precisam é ter uma boa relação entre elas, e não necessariamente com seu médico. Se elas têm uma boa relação com seu médico, ótimo, mas o importante para a saúde são as relações humanas em geral. Para o bem-estar do médico talvez seja importante, também, ter uma boa relação com os pacientes. Ao invés de falar de tecnologia é preciso questionar-se sobre os fatores econômicos. Freqüentemente, a verdadeira razão pela qual não existe boa relação com o paciente deve-se ao fato de que o médico é obrigado a atender muitos pacientes em um único dia. Fala-se da questão tecnológica, mas pode ser apenas uma questão de sobrevivência. É uma questão complexa.

SER.Há uma relação entre a sua teoria sobre a “virtualização” e a inteligência coletiva e o “pensamento complexo” do qual fala o educador e filósofo francês Edgar Morin?
LÉVY. Sim, sobretudo com a teoria da inteligência coletiva porque é uma teoria que tenta não tomar apenas um aspecto das coisas e dizer que tudo depende disso. A inteligência coletiva apóia-se em técnicas, é aplicada em canais sociais, mobiliza competências, conhecimentos e valores que servem para se tomar decisões. É todo um conjunto que deve ser equilibrado e não um ou qualquer método simples aplicado sempre da mesma maneira. Uma das grandes idéias é que cada situação é diferente. É preciso sempre que pensemos juntos a respeito de nossa situação, aqui e agora, para tentar encontrar soluções que farão crescer e desenvolver a comunidade à qual pertencemos. É um olhar ecológico.

SER. Fala-se freqüentemente em exclusão digital e que se as pessoas tivessem poder aquisitivo, o acesso à tecnologia seria mais democrático. As crianças que têm acesso a jogos eletrônicos e computadores desde o nascimento podem desenvolver um pensamento complexo e as outras não...
LÉVY. Certamente, mas a idéia de país subdesenvolvido funciona cada vez menos. O Brasil, por exemplo, que é um país do Terceiro Mundo, tem regiões, como São Paulo, que parecem os Estados Unidos ou a Europa. Isso acontece mais no interior de um país, eu diria, aliás, no interior da humanidade – fazemos todos parte da mesma família. Não é uma questão de país, mas sim uma questão de acesso a um certo tipo de cultura. Mas não estou convencido de que a abordagem puramente econômica seja a mais pertinente porque, mesmo em lugares muito pobres, pessoas que não têm recursos podem dispor de Internet porque há acesso público e gratuito perto de onde estão. A compra de um computador e de uma conexão não é a única condição de acesso. Nesses lugares, pode haver computadores nas escolas. O problema é cultural, pois de nada adiantará ter acesso à Internet se a pessoa for analfabeta. A primeira barreira é a alfabetização, a educação. Isso é o mais importante. Mesmo se a pessoa for pobre ou não tiver recursos, se tiver uma educação, de base poderá se beneficiar de tudo o que a tecnologia pode lhe oferecer. O mais importante é a educação, na qual deveriam ser concentrados todos os esforços, sobretudo na educação elementar.

SER. Em seu livro “Ciberde-mocra-cia” o senhor disse que a Internet aumenta a vigilância sobre as ações governamentais e políticas. Em relação a isso, como o senhor vê a Guerra do Iraque, durante a qual, de um lado, havia os iraquianos, totalmente controlados pelo sistema e, do outro, os EUA, no qual também houve um controle da informação?
PIERRE. Primeiramente, no Iraque, além de não haver Internet, também não havia liberdade de imprensa.

SER. Mas nos EUA sim...
PIERRE. Em relação aos iraquianos não há o que falar, mas, é falso dizer que havia controle absoluto da informação nos EUA. Havia grandes mídias que estavam contra a política de Bush – The Washington Post, The New York Times etc. Além disso, um grande número de sites e de grupos de discussão era contra a política de Bush e transmitia outras informações. Houve um debate totalmente aberto. Acontece que, no final, 70% dos norte-americanos apoiaram a política de Bush. Mas não se pode dizer que todas as idéias não puderam ser expressas. Todas os pontos de vista puderam ser expostos, inclusive os mais radicais.

SER. Mas, o ponto de vista do governo teve grande repercussão na mídia.
PIERRE. Não é o governo quem diz aos jornalistas o que eles devem dizer. Os jornalistas dizem o que querem. Não há controle de imprensa nos Estados Unidos. Isso é uma mentira e um absurdo; são velhas teorias de esquerda segundo as quais há um complô nos países capitalistas, que se tratam de falsas democracias, de ditaduras etc. Se o The New York Times diz “somos contra a política de Bush”... percebe onde quero chegar? Mas não se pode dizer que, nos Estados Unidos, o governo controla a imprensa e também a Internet. Todo mundo pode dizer o que quiser na Internet.

SER. No quê o senhor está trabalhando no momento?
PIERRE. Neste momento estou tentando construir uma ciência da inteligência coletiva utilizando ao máximo todas as possibilidades oferecidas pelos novos meios de comunicação. Haverá uma comu-nidade de pesquisadores em todos os lugares do mundo, no Canadá, nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina – ainda não temos muitas pessoas na Ásia.Vamos ter uma comunidade virtual, um jornal científico on-line e softwares que permitirão recolher dados sobre diferentes empresas, comunidades, cidade virtual etc., para representar a inteligência coletiva. Teremos instrumentos de medida e de representação disponíveis, gratuitamente, na Internet. Então, produziremos teorias que serão testadas em locais “reais”, com o intuito de melhorá-las. Essas teorias serão ma-terializadas sob a forma de soft-wares de simulação da inteligência coletiva, com diferentes programas em função de diferentes teorias.

SER. E esse projeto já está em andamento? Há um site à disposição?
PIERRE. Sim, mas ainda não está terminado. O endereço é http://www.collectiveintelligence.info. O site ainda é muito simples, há apenas algumas páginas mas nos próximos meses ele será enriquecido. Tenho uma cadeira de pesquisa sobre a inte-ligência coletiva na Universidade de Otawa, no Canadá. Aqui em São Paulo foi criado, recentemente, um programa de doutorado em inteligência coletiva na PUC (Pontifícia Universidade Católica), mas trabalhamos também com pesquisadores da USP e de outras universidades brasileiras. Determinamos algumas prioridades nos pontos de aplicação da teoria da inteligência coletiva que são: desenvolvimento econômico, educação, saúde pública – trabalhando em conjunto com a Organização Panamericana da Saúde – democracia e pesquisa científica. Em relação a este último item, significa aplicar as teorias da inteligência co-letiva à pesquisa científica. São todas as dimensões importantes do desenvolvimento humano. Nos-sa finalidade é conseguir os meios para mo-ni-torar a evolução cultural, no sentido do desenvolvimento humano máximo. Educação elementar continua sendo fundamental, sobretudo para que as pessoas se beneficiem de tudo que a tecnologia pode oferecer.

Frases:

“Nós, seres humanos, jamais pensamos sozinhos ou sem ferramentas. As instituições, as línguas, os sistemas de signos, as técnicas de comunicação, de representação e de registro informam profundamente nossas atividades cognitivas: toda uma sociedade cosmopolita pensa dentro de nós. Por esse motivo, não obstante a permanência das estruturas neuronais de base, o pensamento é profundamente histórico, datado e situado, não apenas em seu propósito mas também em seus procedimentos e modos de ação.”

(trecho do livro “O que é o virtual?”)

“A cada grande mutação de técnicas de comunicação há sempre um aumento do poder da linguagem (...)”.
“Não há controle de imprensa nos EUA. Isso é uma mentira e um absurdo. São velhas teorias de esquerda (...)”.
“ (...) A conotação negativa ou angustiante da apresentação da rede por algumas mídias vem também do fato de que (...) o ciberespaço é justamente uma alternativa para as mídias de massa clássicas. De fato, permite que os indivíduos e os grupos encontrem as informações que lhes interessam e também que difundam sua versão dos fatos (inclusive com imagens) sem passar pela intermediação dos jornalistas. O ciberespaço encoraja uma troca recíproca e comunitária, enquanto as mídias clássicas praticam uma comunicação unidirecional na qual os receptores estão isolados uns dos outros. Existe, portanto, uma espécie de antinomia, ou de oposição de princípios, entre as mídias e a cibercultura, o que explica o reflexo deformado que uma oferece da outra para o público.”

(trecho do livro “Cibercultura”)

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