CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Bráulio Luna Filho
CONFERÊNCIA (pág. 4)
Fronteiras do Pensamento
CRÔNICA (Pág.10)
Luis Fernando Verissimo*
EM FOCO (Pág.12)
Obesidade
ESPECIAL (Pág. 16)
Comportamento
CARTAS E NOTAS (Pág. 23)
Projeto Ministério Público pela Educação
MÉDICOS NO MUNDO (Pág. 24)
Neurocirurgia
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 28)
Ácido acetilsalicílico
GIRAMUNDO (Pág. 32)
Medicina & Ciência
PONTO COM (Pág. 34)
Mundo digital & tecnologia científica
HOBBY (Pág. 36)
Carros antigos
GOURMET (Pág. 40)
Costelinha suína com farofa de couve
CULTURA (Pág. 44)
Adoniran Barbosa
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Jorge Fernando dos Santos
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 28)
Ácido acetilsalicílico
AAS, a “droga maravilhosa”
Talyta Cortez Grippe*
Desde a Antiguidade procuram-se mecanismos para aliviar a dor. Alguns exemplos de extratos de plantas primeiramente utilizados com esse fim eram o colchicina (Colchicum autummale) e o murto (Myrtus communis L), que possuíam propriedades anti-inflamatórias e continham traços de ácido acetil, assim como a casca da árvore do salgueiro branco (Salix Alba).1 A história do uso do salgueiro nos remete a um povo muito antigo, os sumérios que, de acordo com tabletes escritos há 4 mil anos, já prescreviam o uso dessa planta para aliviar as dores, assim como os assírios, cujos registros encontrados por arqueólogos datam de 3,5 mil/2 mil anos. Os egípcios citaram o salgueiro no Papiro de Ebers (tratado médico de, aproximadamente, 1550 a.C.) como portador de efeitos analgésicos. Também os chineses e os gregos usavam a planta para fins medicinais.2,3
Registros na História conferem a Hipócrates, por volta de 400 a.C, a prescrição de folhas de salgueiro para aliviar dores. Alguns de seus manuscritos revelam: “pó ácido da casca do salgueiro ou chorão (que contém salicilatos) alivia dores e diminui a febre”. Além do filósofo grego, outros nomes importantes na história médica da Grécia também indicaram o uso do salgueiro, como o cirurgião grego do exército romano, Dioscorídes, e um dos nomes mais respeitados na história da Medicina, Galeno de Pérgamo.3,4
A redescoberta das folhas de salgueiro pelo reverendo Edward Stone, de Chipping Norton, no condado de Oxford, Reino Unido – relatada por ele em 1763 – ocorreu de forma acidental. Ao provar a folha, o reverendo associou o gosto amargo ao de outra planta chamada Peruvian, rica em quinino, que era utilizada para tratar os pacientes com malária. Stone usou a antiga Doutrina das Assinaturas para associar a grande incidência de malária naquela região à descoberta da planta. Segundo essa doutrina, a localização da planta, o formato de suas folhas ou outras características físicas eram “assinaturas de Deus” para indicar em que casos essa planta poderia ser usada. Após ter pulverizado as folhas e testado em pacientes com febre e inflamação, ele descreveu as suas prescrições, devido à eficiência da planta no tratamento desses sintomas.2,5,6
O princípio ativo da casca do salgueiro é a salicilina, que foi isolada, primeiramente, em 1828, pelo alemão John A. Buchner. Essa substância também está presente em outras plantas, como a Spiraea ulmaria. Em 1829, o farmacêutico francês Henri Leroux aperfeiçoou o procedimento de extração de salicilina e obteve cerca de 30 g extraídos de 1,5 kg da casca original do salgueiro. Já em 1838, o químico italiano Raffaele Piria promoveu a quebra das moléculas de salicilina em um açúcar e um aromático (salicilaldeído), que converteu posteriormente, por hidrólise e oxidação, em um ácido cristalizado incolor, o qual chamou de ácido salicílico.2,4
O primeiro ensaio clínico apropriado da salicilina é creditado ao médico escocês Thomas MacLagan, cujos resultados no tratamento de oito pacientes com febre reumática2,4,7 foram publicados em 1876. Kolbe e Lautmann desenvolveram um método eficaz para sintetizar ácido salicílico a partir de fenol, e esse composto passou a ser usado pela população como antitérmico.8 A síntese laboratorial desse composto começou por volta de 1890, com alguns problemas como baixa tolerância, irritação gástrica e sabor muito amargo.1
O salgueiro branco (Alix Alba) éconhecido desde a Antiguidade
como portador de efeitos analgésicos
A partir desse ponto, há várias divergências.9 E permanece a dúvida a respeito de quem foi o responsável pela descoberta do ácido acetilsalicílico e de como se deu essa descoberta,10 ocorrida nos laboratórios da empresa Bayer. A versão mais difundida aponta que Felix Hoffmann, um químico alemão, teria sintetizado esse composto, em 10 de agosto de 1879, com o objetivo de atender seu pai, que sofria de reumatismo e reclamava do ácido salicílico, pois além de não gostar de seu gosto amargo tinha irritações gástricas devido ao uso do remédio. Depois da síntese, Hoffmann anotou: “Uma mistura preparada com 50 partes de ácido salicílico e 75 partes de anidrido acético é aquecida por cerca de 2 horas a cerca de 500oC num balão de refluxo. Um líquido claro é obtido, do qual, quando resfriado, é extraída uma massa cristalina, que é o ácido acetilsalicílico. O excesso de anidrido acético é extraído por pressão e o ácido acetilsalicílico é recristalizado em clorofórmio seco.” A outra vertente da história da aspirina, menos conhecida, indica Arthur Eichengrun como inventor do método da síntese do AAS. Contudo, apesar da carta escrita por Eichengrun, em um campo de concentração, ter trazido novas informações sobre a questão, a verdadeira história ainda não pode ser confirmada.9,10
As propriedades analgésicas das folhas de salgueiro
(primeira imagem) foram redescobertas pelo reverendo
Edward Stone, em 1763. A planta Spirea é o homônimo
alemão de Spirsäure (ácido salicílico)
Somente após um ano da descoberta da nova droga, ela foi testada por Heinrich Dreser, um químico laboratorial da Bayer, que comprovou sua eficácia como antitérmico. Segundo a carta escrita por Eichengrun, a droga foi clinicamente testada durante esse período, o que contrasta com a explicação dada pela Bayer de que o fármaco ficou retido devido aos seus efeitos colaterais.9
Já em 1889 foi dado o nome comercial de Aspirina® ao fármaco. Provavelmente, ele deriva de “A” proveniente de acetil e “spir” da planta Spiracea ulmaria, que possui o mesmo princípio ativo da casca do salgueiro. O sufixo “in” era empregado com frequência no nome de medicamentos daquela época.1 Outra vertente afirma que o nome se deve ao fato de que o ácido salicílico foi, primeiramente, conhecido como acidum spiricum.7
Em 6 de março de 1899, a aspirina foi patenteada pela Bayer, que enviou folders divulgando o fármaco para todo o mundo,2,10 tornando-o conhecido e utilizado internacionalmente. Foi o primeiro medicamento comercializado na forma de tabletes, em 1900, solução dada à dificuldade que havia em dissolvê-lo, além de prevenir sua adulteração e prever uma dosagem mais exata do que a versão em pó, seu primeiro formato.2 O medicamento tornou-se tão popular que foi chamado pela imprensa da época de the wonder drug (a droga maravilhosa), e chegou até a conquistar um lugar no Guiness Book, em 1950, como o medicamento analgésico mais popular do mundo.2
Somente em 1971, John Vane, do Royal College of Surgeons, em Londres, elucidou o mecanismo de ação da droga, descoberta que lhe proporcionou o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1982.
Desde os anos 80, há um alerta aos profissionais de saúde a respeito do uso de ASS em crianças e adolescentes. Avaliações epidemiológicas confirmaram a relação entre o uso da aspirina por crianças com quadros de doença viral e a síndrome de Reye –causadora de encefalopatia e degeneração gordurosa do fígado.
Já a descoberta dos efeitos da aspirina como prevenção para o infarto do miocárdio foi feita por um médico generalista californiano, Lawrence Craven. O fármaco é atualmente indicado, também, para tratamento de gestantes com anticorpos antifosfolípides e na prevenção secundária de infarto e acidente cerebral vascular.
Porém, um efeito colateral da imensa popularidade do medicamento foi sua importante influência na promoção da automedicação. A cultura de tomá-lo antes de se sentir mal provavelmente preconizou o uso autônomo e pré-sintomático dos remédios, em geral, comum atualmente. Existem dados indicando que o consumo de AAS no Brasil já chegou a 1 bilhão de comprimidos ao ano, uma média de, aproximadamente, 7 comprimidos por pessoa ao ano. Mas, nos Estados Unidos e na Argentina esse número é ainda maior.
Além de possibilitar um menor incômodo com a febre ou dor de cabeça, o sucesso do AAS foi tanto que ele participou da mudança de pensamento e cultura de toda uma geração. Supervalorizada durante a 1ª Guerra Mundial, a aspirina estava entre os medicamentos levados até a Lua, junto com os primeiros homens que lá pisaram. Irá também para Marte?
Referências
1. Bricks LF. Uso de anti-inflamatórios não hormonais em crianças com doenças virais vs. risco potencial de síndrome de Reye e doenças invasivas graves pelo Streptococcus do grupo A. J Pediatr 2000;22:35-43.
2. Carvalho RB. Munição contra dor, febre e inflamação, Ciência Hoje 1999;26:76-77.
3. Diogo LP, Saitovich D, Biehl M, Bahlis LF, O’Keeffe CF, Carvalhal G F, Gomes VO. Existe associação entre antiinflamatórios não-esteróides e nefropatia induzida por contraste. Scientia Medica 2008;18:133-140.
4. Jack BD. One hundred years of aspirin. Lancet 1997; 350: 437–39
5. Luengo MB. Uma revisão histórica dos principais acontecimentos da imunologia e da farmacologia na busca do entendimento e tratamento das doenças inflamatórias. Revista Eletrônica de Farmácia 2005;2(2):64-72.
6. Mahdi JG, Mahdi AJ e Bowen ID. The historical analysis of aspirin discovery, its relation to the willow tree and antiproliferative and anticancer potential. Cell Proliferation 2006;39:147-155.
7. Miner J e Hoffhines A. The Discovery of Aspirin’s Antithrombotic Effects. The Texas Heart Institute Journal 2007;34:179-86.
8. Rinsema TJ. One hundred years of aspirin. Med Hist 1999;43:502-507.
9. Sneader W. The discovery of aspirin: a reappraisal. BMJ 2000;321:1591–1594.
10. Stone, Edmund. An Account of the Success of the Bark of the Willow in the Cure of Agues. In a Letter to the Right Honourable George Earl of Macclesfield, President of R. S. from the Rev. Mr. Edmund Stone, of Chipping-Norton in Oxfordshire. Philosophical Transactions 1763;53:195-200.
11. Vane JR. The fight against rheumatism: from willow bark to COX-1 sparing drugs. J Physiol Pharmacol 2000;51:573-586.
* Médica residente do 3º ano de Neurologia no Hospital de Base do Distrito Federal e mestranda em Ciências Médicas na Universidade de Brasília