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CAPA

PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Bráulio Luna Filho


CONFERÊNCIA (pág. 4)
Fronteiras do Pensamento


CRÔNICA (Pág.10)
Luis Fernando Verissimo*


EM FOCO (Pág.12)
Obesidade


ESPECIAL (Pág. 16)
Comportamento


CARTAS E NOTAS (Pág. 23)
Projeto Ministério Público pela Educação


MÉDICOS NO MUNDO (Pág. 24)
Neurocirurgia


HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 28)
Ácido acetilsalicílico


GIRAMUNDO (Pág. 32)
Medicina & Ciência


PONTO COM (Pág. 34)
Mundo digital & tecnologia científica


HOBBY (Pág. 36)
Carros antigos


GOURMET (Pág. 40)
Costelinha suína com farofa de couve


CULTURA (Pág. 44)
Adoniran Barbosa


FOTOPOESIA (Pág. 48)
Jorge Fernando dos Santos


GALERIA DE FOTOS


Edição 74 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2016

CONFERÊNCIA (pág. 4)

Fronteiras do Pensamento

“A boa eduação é cara, mas a má é ainda mais cara”

Fátima Barbosa*

 

A frase acima, do professor e filósofo espanhol Fernando Savater, sintetiza sua cruzada pela valorização da educação pública de qualidade para o desenvolvimento dos paí­ses e para o aprofundamento da democracia, tanto no aspecto político como no ético, social e econômico. “A violência surge dos que não sabem se expressar”, alertou Savater, durante conferência na iniciativa Fronteiras do Pensamento, em São Paulo. Tendo ministrado aulas de Ética e de Filosofia Política na Universidade Complutense de Madri, durante cerca de 30 anos, e atualmente aposentado, ele afirmou que os professores, principalmente os da educação básica, “são os baluartes da democracia”, cujos “maiores inimigos são a miséria e a ignorância”. Por isso, defendeu, “é imprescindível formar cidadãos e, para isso, não se inventou outra coisa que não seja a educação. Somos muitos e, ou dialogamos, ou a desgraça nos atingirá a todos em escala planetária”.

Em nenhum país do mundo, observou, os políticos dão à educação a importância que ela tem. “Por isso, a sociedade tem de lembrá-los disso, constantemente”. A educação, afirmou o filósofo, deve ocorrer nas escolas. Em casa, “os pais podem passar os seus valores, e dar amor”. Mas, alertou, “para isso é preciso ter tempo. Quem não o tiver, que não tenha filhos, não é obrigatório. Filho é uma obra de arte, é ter uma obrigação”. Ele fala com experiência. Dois de seus livros, que se tornaram best-sellers – Ética para meu filho (no original, Ética para Amador) e Política para meu filho – publicados no Brasil –, foram escritos com o desafio de explicar em linguagem clara e acessível a seu filho, cujo nome é Amador, na época adolescente, e ao público em geral, temas complexos de ética e política. Muitas de suas cerca de 50 obras foram traduzidas para mais de 20 idiomas.

Savater é diretor da revista cultural espanhola Claves de Razón Prática. E, além da ética e da educação, seu ativismo direcionou-se também contra o terrorismo. Tendo nascido na região basca – na cidade de San Sebastián –, ele sempre se posicionou contra o grupo separatista armado basco ETA (Pátria Basca e Liberdade). Confira, a seguir, os principais trechos de sua conferência, acompanhada pela Ser Médico.
 

Educação e democracia
Educação e democracia nascem juntas. Nas sociedades que não eram democráticas, como a do Império Persa, as pessoas não eram educadas justamente porque não havia cidadãos, mas, sim, súditos. A eles só ensinavam o cumprimento de um papel pré-concebido. Já na Grécia, era preciso educar cidadãos, e não apenas ensinar habilidades profissionais, pois nenhum grego nascia com lugar determinado na escala social. A partir de sua formação cidadã, ocupariam um determinado cargo público ou desempenhariam certa atividade. Eram formados para governar, uma vez que na democracia todos os cidadãos são governantes. Em Política, Aristóteles defende que, antes de ser governante, é preciso ter sido governado. Depois da formação cidadã, todos deveriam estar prontos para ocupar qualquer cargo político. A formação grega não descartava o lado técnico, mas tinha acima de tudo um caráter humanista, em que se discutiam os objetivos da sociedade.


 

Educação contemporânea
A educação contemporânea foca essencialmente o aspecto instrumental e pretende formar bons profissionais para o mercado de trabalho, negligenciando a formação de bons cidadãos. Não deveríamos nos satisfazer em formar apenas trabalhadores, que, não importa o nível, vão seguir a rotina do país e não sabem debater os objetivos da vida em comum. Não importa o poder econômico ou o papel desempenhado na sociedade, todos devem ser educados para exercer o seu papel de governante, de agente político. Como dizia o economista e filósofo John Kenneth Galbraith, “todas as democracias contemporâneas vivem sob o temor permanente da influência dos ignorantes”. Não se trata da ignorância acadêmica – todos nós ignoramos muitas coisas –, mas, sim, da ignorância de não ser capaz de entender um texto escrito, além dos futebolísticos. Os ignorantes votam e decidem como os demais. Se eles são muito mais numerosos que as pessoas preparadas, educadas, encaminharão a vida social na direção da demagogia, vão colocar obstáculos às soluções necessárias sempre que implicam algum sacrifício, vão favorecer as desigualdades etc.


"A educação ética deve transmitir coragem,
generosidade e prudência"

 

Violência como forma de expressão
A ignorância da qual falava Galbraith é a da falta do imprescindível para a relação política com os outros, ou seja, de quem não é capaz de entender uma argumentação inteligível que alguém lhe faça sobre propostas, propósitos ou necessidades. E uma vez que a democracia é baseada na capacidade dos cidadãos de persuadir e serem persuadidos, a falta de capacidade de expressão tende à violência. Ela é a reação dos que não sabem se expressar. Por isso, é preciso favorecer que todos tenham meios de expressão.


Objetivos do ensino na democracia
Como em uma democracia não sabemos qual é o lugar de cada um, cada pessoa precisa lutar para abrir caminhos e encontrar um lugar adequado à sua capacidade, criatividade ou ao que for. Portanto, é necessário educar as pessoas de uma maneira aberta, para a vida. Por isso, o destino da democracia está intimamente ligado ao da educação. Esta permite a verdadeira transformação, que não seja sangrenta ou com violência. Que o filho do ignorante nem sempre precise ser ignorante. Que os filhos dos excluídos, dos que de alguma maneira não tenham nível social, possam alcançar seu lugar na sociedade. A educação luta contra essa fatalidade. Assim, os que lutam contra a miséria e a ignorância são os verdadeiros defensores da democracia e não aqueles que bombardeiam países ou invadem territórios. Os professores da educação básica são os baluartes dessa luta.
 

Educação ética: coragem, generosidade e prudência
Há três conjuntos de virtudes essenciais que se deve tentar transmitir na educação ética: coragem, generosidade e prudência. Coragem para poder viver, porque todos nós vivemos com o panorama da morte, das dificuldades, das ameaças. Sem coragem não dá para viver. E não dá para, principalmente, viver eticamente. Churchill dizia que a coragem é a virtude ética mais importante, porque sem ela de nada valem todas as outras. Uma pessoa pode ser muito virtuosa, mas se não tem coragem, se não é valente, não saberá praticar suas virtudes. Assim, reforçar a coragem, coisa que não é fácil, muitas vezes em circunstâncias complicadas, é uma das partes da educação ética. Generosidade para poder conviver. Conviver sempre exige, de alguma forma, ceder. Todos nós tivemos, quando crianças, um sonho de onipotência, desfeito aos poucos quando vimos que somos apenas mais um entre muitos, cada um com seus objetivos. A convivência com outros é sempre um pouco dolorosa, um pouco frustrante, pois nem sempre podemos fazer o que queremos. Temos de limitar nossos desejos aos limites dos outros. É preciso generosidade para suportar os desejos alheios e para ajudar quem, de alguma forma, não pode superar suas próprias expectativas sociais e precisa de apoio. E prudência para poder sobreviver, porque, evidentemente, a vida está cheia de armadilhas, dificuldades e riscos. Fazer o bem é, muitas vezes, arriscado, e o martírio, sem benefício, não serve para nada.
 

A boa educação é cara
Para que as funções intelectuais sejam desenvolvidas, a educação tem de ser de qualidade para todos. Não adianta termos a melhor educação para as elites e uma fast-food para a maior parte da população. O problema é que a boa educação para todos é cara. Os Estados estão cada vez mais negligentes nesse sentido porque é um enorme investimento, em longo prazo. E as pessoas que mais precisam dela são aquelas que não podem consegui-la por seus próprios meios. Custa caro porque é preciso reunir grupos pequenos de alunos e porque os professores têm de reciclar seus conhecimentos, não podem continuar ensinando aquilo que aprenderam. Para isso, precisam de tempo livre para estudar e de outros professores que os substituam durante as ausências. Evidentemente, isso ocupa uma parte importante do orçamento de qualquer país. Mas, se a boa educação é cara, a má educação é ainda mais cara. A escola deve ser pública, ainda que algumas vezes possa ser mista, com o custo procedente de um fundo privado.

Hoje, dentre os países mais afetados pela crise na Europa e em outros continentes, aqueles que têm mais probabilidade de superá-la são os que mais investiram em educação. Por isso, precisamos exigir dos políticos esse investimento. Se não forem cobrados, não o farão, principalmente porque o tempo da política é diferente do tempo da educação. Se amanhã, oxalá, começassem a educar de forma maravilhosa na Espanha ou no Brasil, nossas sociedades só notariam dentro de 15 ou 20 anos. Não há político no mundo que tenha proje¬tos com uma perspectiva de tempo como essa. Os que pensam assim são quase considera¬dos profetas. Portanto, somos nós, cidadãos, os que temos de convencê-los da importância da educação. É nossa responsabilidade lembrá-los que eles poderão ser substituídos a cada nova eleição e que a sociedade vai continuar atuando.
 

Papel dos professores e era digital
Os professores deveriam ser mais valorizados não apenas do ponto de vista salarial, mas também social. Em programas de debate em rádios e em canais de tevê, há sempre, entre os convidados, atores, cientistas, artistas, catedráticos da universidade e nunca professores de ensino fundamental. No entanto, são eles que estão em contato com as crianças, observando a evolução delas, como, por exemplo, as mudanças ocorridas nos últimos 20 anos com o surgimento da internet, dos celulares etc. Mas ninguém os escuta. Na era digital, o papel do professor transformou-se, mas não foi suprimido. Hoje eles são ainda mais necessários. Se, anteriormente, educava-se para informar e, atualmente, as informações estão mais acessíveis, cabe ao professor desenvolver nos alunos as habilidades de pesquisa, orientação e gestão da informação. A internet pode ser um instrumento extraordinário, mas não educa, quem educa são as pessoas. Uma grande parte da internet é propaganda. E só aprendemos a viver com outros seres humanos.
 

O papel dos pais e da escola
A educação é uma oportunidade de se livrar da influência dos pais. O bom educador é o que espera que o aluno seja livre, que não precise mais dele. Os pais que prendem os filhos não estão educando. Ensinar é prepará-los para que possam prescindir de nós. Pais desenvolvem, por exemplo, interesses afetivos e a adesão a certos costumes. O professor não pode exigir essa identificação, mas pode ensinar o respeito nas relações interpessoais. Diferentemente do seio familiar, as relações na escola não são baseadas no amor. A escola, portanto, é educadora em si mesma. Nela o aluno se relaciona com pessoas que não são de sua família, mas que ele deve aprender a respeitar. Por meio da educação, ele desenvolverá os vínculos capazes de uni-lo a outros cidadãos, a outros países, ao mundo. E esse mundo simbólico no qual os homens vivem é descoberto por meio da educação.


"Quem não tiver tempo, que não tenha filhos,
não é obrigatório"


Ética para meu filho
Quais são as grandes lições éticas que os pais devem deixar para seus filhos? Escrevi Ética para meu filho porque, no final da era franquista, a Espanha estava envolvida em muita religião. Mas a ética é para quem tem religião e para quem não tem. Meu filho serviu-me como exemplo. Claro que os pais não vão dar aulas de ética, mas quem não tiver tempo, que não tenha filhos. Não é obrigatório. Filho é uma obra de arte, tem de ter tempo. Ter um filho é ter uma obrigação.
 

Ou educamos e dialogamos ou...
Por tudo isso, é imprescindível formar cidadãos e, para isso, não se inventou outra coisa que não seja a educação. Gostaria que todos vocês também se convertessem em missio¬nários da educação e insistissem na importância de uma boa educação pública. Todos temos de ter consciência de que devemos educar os nossos concidadãos. Se não queremos educar, temos de suportar o que nos acontece quando essas pessoas não educadas irrompem na vida pública. E, hoje, a educação é especialmente importante. Somos muitos e, ou dialogamos, ou a desgraça nos atingirá a todos em escala planetária.

 


Perguntas da plateia presente à conferência, feitas a Savater, e suas respostas
 

O que o senhor acha da ideologia na escola?
A educação deve desenvolver o pensamento crítico. Não é verdade que todas as opiniões sejam respeitáveis, isso é uma mentira. Todas as pessoas devem ser respeitadas. As opiniões devem ser discutidas, ver se têm razões sólidas. O professor não pode fingir que é a favor de tudo. Não pode, por exemplo, achar o canibalismo normal e defender que ele seja uma variedade gastronômica como outra qualquer. Em algumas situações é preciso ser mais decidido. Uma coisa é não ter dogmas, mas outra é achar que qualquer coisa pode ser discutida, por exemplo, direitos humanos. A neutralidade axiológica promulgada atualmente não é uma postura que pode ser levada totalmente a cabo, uma vez que nem tudo está em discussão. Alguns valores estão estabelecidos.

Como viver juntos?
O mundo não tende a ser totalmente plano, sem estrondos, nem polêmicas. A polêmica não é ruim, pelo contrário, é boa. O que é ruim é convertê-la em fratura, em enfrentamento social. Devemos ter a capacidade de convencer e ser convencidos, sem violência, na ágora das ideias. É preciso paciência, especialmente na política. Paciência para perseverar naquilo que se acredita ser bom.

Como enfrentar a corrupção?
A corrupção na política não é um problema ético, mas político. A impunidade é a grande questão, faltam mecanismos de controle institucionais, punições para coibi-la. A ética não resolve os problemas políticos, assim como uma borrifada de água benta não apaga um incêndio. É inevitável que onde haja liberdade haja pessoas que abusem dela e a utilizem mal. Mas não é inevitável que essas pessoas fiquem impunes, que as leis só castiguem os pequenos e não os grandes, que as redes da lei sejam feitas para capturar os peixes pequenos e deixar passarem os grandes.

O senhor é otimista?
Todo mundo acha que sou otimista, mas sou pessimista. Tem otimista, por exemplo, que está em casa e sente o cheiro de fogo, e pensa: “os bombeiros virão”. O pessimista é aquele que abre a janela e grita: “fogo, socorro”. Eu sou esse. É preciso corrigir as coisas ou aguentá-las. Elas não se arrumam sozinhas. O que vamos fazer? Todos vivemos rodeados de males e morreremos rodeados de males. O máximo que podemos desejar é que não sejam sempre os mesmos.

 


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