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EDITORIAL
Ponto de Partida


ENTREVISTA
O cientista Luís Hildebrando Pereira da Silva é o convidado especial desta edição


CRÔNICA
Pasquale Cipro Neto


POLÍTICA DE SAÚDE
Fátima Dinis Rigato


SINTONIA
Cássio Ruas de Moraes


DEBATE
Informações Médicas à Disposição de Todos


EM FOCO
Cultivando Hipócrates


HISTÓRIA DA MEDICINA
Moacyr Scliar


LIVRO DE CABECEIRA
Trindade, o conflito da Irlanda em romance


CULTURA
Noel Rosa


TURISMO
Conheça Bonito, no extremo sul do Pantanal


CARTAS & NOTAS
Elogios, Agradecimentos e Bibliografia


POESIA
Mário Quintana


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Edição 23 - Abril/Maio/Junho de 2003

CULTURA

Noel Rosa

Noel Rosa

Um pierrô apaixonado, que vivia só cantando...

Em 11 de dezembro de 1910, dona Marta enfrentava momentos dramáticos em trabalho de parto, sendo assistida pelo médico José Rodrigues da Graça Mello em seu chalé humilde em Vila Isabel, Rio de Janeiro. O parto foi difícil, a fórceps, e teve como conseqüência o afundamento do maxilar inferior do bebê que nascia e se chamaria Noel de Medeiros Rosa. Com o passar dos anos, tentou-se uma cirurgia de correção para o menino, sem qualquer resultado positivo devido às limitações da medicina na época. O problema causava-lhe desconforto e complexos. Os colegas da infância o apelidaram de “Queixinho”. Durante toda a vida, alimentou-se com dificuldades, preferindo líquidos e substâncias macias, evitando comer e rir em público. Os dentes eram sempre atacados por cáries, obrigando-o a submeter-se a tratamentos dentários contínuos. Sua voz era fraca, como um fio de voz.

Tornou-se jovem entre os efervescentes anos 20 e 30 das revistas radiofônicas e do movimento modernista. Adorava a vida boêmia e os bares, onde escrevia versos e tocava bandolim em rodas de samba. Fez amizade com “bambas” cariocas, como Sinhô, o Rei do Samba. Começou a compor e, em 1929, fez a letra de “Queixumes”, em parceria com Henrique Brito. Quase ao mesmo tempo em que sua música “Com que roupa?” emplacava como um sucesso do Carnaval de 1931, Noel inicia-va o curso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

O ano seguinte seria marcado pelo abandono à Faculdade e o início de uma guerra musical com Wilson Batista que fertilizou a poesia de Noel, resultando em preciosidades. Primeiramente, Batista compôs o samba Lenço no Pescoço. Em seguida, Noel fez Rapaz Folgado, uma crítica à música de Batista que exaltava a malandragem e a vadiagem, depreciando o uso de palavras como “orgia”, “gandaia” e “ginga”. Nesse samba, Noel alfinetou com a frase “malandro é palavra derrotista”. Wilson rebateu com Mocinho da Vila e Noel respondeu com Feitiço da Vila. Wilson devolveu com Conversa Fiada, mas Noel compôs Palpite Infeliz, aquele que se tornaria um de seus mais famosos sambas depois de explodir no Carnaval de 1936. A polêmica poética durou três anos. Noel perdeu o interesse por ela depois que Wilson compôs Frankenstein da Vila, referindo-se a seu defeito na face. Com a popularidade em alta, surgiram convites para produzir melodias para o filme Cidade Mulher. Suas músicas, na interpretação de Aracy de Almeida e Marília Batista, dominavam as rádios.

Noel também escreveu novelas de rádio e gostava de desenhar, inclusive fez célebres auto caricaturas. Boêmio, amante do álcool e do inseparável cigarro, não se prendia a empregos, gastava tudo que ganhava, dormia em bancos de praça. Nem mesmo o casamento com Lindaura, por insistência da mãe, conseguiu mudar sua rotina em bares e cabarés na companhia de mulheres, musas inspiradoras de obras-pri-mas que falam de ciúme e desamor. A paixão por Júlia Bernardes (a Julinha), mulher da noite, rendeu, entre outras, as memoráveis Meu Barracão e Pra Esquecer. Juracy de Morais, a dançarina Ceci de um cabaré da Lapa, sua grande paixão, foi responsável pelas eternas Último Desejo, Pra que mentir? e Quantos Beijos, entre outras.

Acometido pela tuberculose, Noel, por insistência da mãe, trocou o Rio por Belo Horizonte, em 1934, para tratar a doença. Lá trabalhou em rádios e continuou compondo a solidão, o desamor, a pobreza e a vida dos marginalizados. Em 1935, voltou ao Rio dizendo preferir viver pouco onde bem entendia a morar mais 20 anos em qualquer outro lugar. Em 1º de maio de 1937 teve uma forte hemoptise, ficando de repouso até o dia quatro de maio, quando as rádios interromperam a programação, para anunciar que morria “o maior poeta popular brasileiro, o filósofo do samba, com apenas 26 anos”.

Da experiência na Faculdade, apenas a música Coração dá cadência de samba aos ensinamentos médicos. “Esse samba foi composto no intervalo de uma aula. Noel foi com os colegas para o Café Nice, onde escreveu os primeiros versos. Depois que ele gravou a música, os colegas da faculdade chamaram a atenção para as descrições equivocadas sobre as funções do coração. Os colegas diziam que isso demonstrava o desinteresse que ele tinha pela Medicina e o desconhecimento da Anatomia. Ainda bem que ele não seguiu a Medicina”, brinca a cantora Ione Papas, que gravou o samba anatômico em seu CD Noel por Ione (veja entrevista na página ao lado). Noel influenciou e continua influenciando grandes compositores brasileiros, com seus mais de 230 sambas deixados para a posteridade. Hoje, quase 70 anos após sua morte, a obra de Noel continua sendo revisitada por intérpretes da MPB.

E pensar que o gênio quase não nasce...

Coração

Coração,
Grande órgão propulsor,
Transformador do sangue
Venoso em arterial;
Coração,
Não és sentimental,
Mas, entretanto, dizem
Que és o cofre da paixão.
Coração,
Não estás do lado esquerdo,
Nem tampouco do direito,
Ficas no centro do peito,
Eis a verdade!
Tu és pro bem-estar do nosso sangue
O que a Casa de Correção
É para o bem da humanidade

Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.
Eu afirmo,
Sem nenhuma pretensão,
Que a paixão faz dor no crânio
Mas não ataca o coração.

Conheci
Um sujeito convencido,
Com mania de grandeza
E instinto de nobreza,
Que, por saber
Que o sangue azul é nobre,
Gastou todo o seu cobre
Sem pensar no seu futuro.
Não achando
Quem lhe arrancasse as veias
Onde corre o sangue impuro,
Viajou a procurar,
De norte a sul,
Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno,
Pra ficar com o sangue azul.

Enfeitiçados por Noel

A história e os intérpretes da música popular brasileria agradecem ao fato de Noel Rosa abandonar o curso de medicina para dedicar sua curta, mas intensa existência à música. O CD Noel por Ione da cantora Ione Papas, pela gravadora Dabliú, é uma prova bem acabada de que a música de Noel é muito atual. Uma parceria muito feliz entre Cristina Buarque (voz) e Henrique Cazes (voz e violão), resultou em uma série de músicas Sem Tostão, a crise não é boato e Sem Tostão, a crise continua, pela Kuarup que, contrariando o título, são valiosos e também incluem músicas de Wilson Batista, no período da polêmica.

Ser Médico. Como foi o seu encontro musical com Noel e por que você decidiu gravar suas composições?
Ione Papas. Conheci as músicas de Noel por meu pai, que também tocava, embora não profissionalmente. Mas, decidi gravá-lo por acaso. Um amigo mostrou-me uns discos antigos de seu pai e, entre eles, estava a obra de Noel na voz de Aracy de Almeida. Nunca tinha ouvido a Aracy cantar, só a conhecia como jurada do Programa de Sílvio Santos. Quando ouvi o disco, me apaixonei e fiquei encantada com a voz de Aracy. E ela ficou sendo minha referência.

Ser. Como selecionou 15 músicas entre uma lista de mais de 250? Tem alguma preferida?
Ione. É difícil, porque quase tudo que o Noel fez é genial. Pensei inicialmente naquelas que não abriria mão de cantar. Gosto de cantar Triste Cuíca, feita em parceria com Hervê Clodovil, um pianista de Minas Gerais. Ela é diferente, a letra é um pouco surrealista, com aquela triste cuíca que parecia um boi mugindo, tão ousada para 1930! Meu Barracão, na qual ele fala que o barracão saiu do lugar e foi procurar a amada também é surrealista.

”... como se tivessem sido feitas hoje”

Ser. O que a levou a gravar uma série com Noel Rosa?
Cristina Buarque. No início de década de 90, saiu um livro do João Máximo e Carlos Didier sobre o Noel. Eu e o Henrique Ca-zes estávamos lendo o mesmo livro na época e tivemos a idéia de fazer um show simples, só violão e voz, por causa da impressionante atualidade da obra de Noel. Quando ele fala de políticos e do cotidiano é como se as músicas tivessem sido feitas hoje, talvez porque os problemas continuam os mesmos, não é? O Henrique fez parte do grupo Coisas Nossas, na década de 70, que cantava basicamente o repertório de Noel. Depois do show, gravamos o primeiro disco. Um tempo depois mudamos o repertório e fizemos o segundo disco e mais shows, que, aliás, continuamos fazendo de vez em quando. Quando cantamos, as pessoas riem muito, parece que as músicas têm um recado para alguém que está alí.

Ser. Como foi o processo de escolha dessas músicas?
Cristina O Noel tem mais de 250 músicas, mas em dois discos conseguimos gravar uns 20% da obra dele. O Henrique foi quem escolheu a maioria das músicas que cantamos nos shows. A maior parte da obra de Noel é tão boa que a gente sente muito em deixar algumas de fora. Mas tem algumas que nem são tão boas, porque o Noel morreu muito novo.

Ser. O Almir Chediak disse que seu irmão “Chico Buarque é o Noel Rosa redivivo”. Você concorda com a comparação?
Cristina. Não costumo comparar. É muito difícil comparar o Chico com alguém que tenha feito tanta coisa boa em tão pouco tempo. Os dois são geniais, mas são de épocas diferentes. A produção do Chico também era muito boa quando ele era novo, mas foi se aperfeiçoando depois. Não concordo que um é a reedição do outro. O Noel é o Noel e o Chico é o Chico.

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