CAPA
EDITORIAL
Ponto de Partida
ENTREVISTA
O cientista Luís Hildebrando Pereira da Silva é o convidado especial desta edição
CRÔNICA
Pasquale Cipro Neto
POLÍTICA DE SAÚDE
Fátima Dinis Rigato
SINTONIA
Cássio Ruas de Moraes
DEBATE
Informações Médicas à Disposição de Todos
EM FOCO
Cultivando Hipócrates
HISTÓRIA DA MEDICINA
Moacyr Scliar
LIVRO DE CABECEIRA
Trindade, o conflito da Irlanda em romance
CULTURA
Noel Rosa
TURISMO
Conheça Bonito, no extremo sul do Pantanal
CARTAS & NOTAS
Elogios, Agradecimentos e Bibliografia
POESIA
Mário Quintana
GALERIA DE FOTOS
POLÍTICA DE SAÚDE
Fátima Dinis Rigato
O Visível e o Invisível das Crianças de RuaFátima Dinis Rigato*
Em São Paulo, oito milhões de habitantes – incluindo a maior concentração de jovens, em números absolutos – vivem em distritos onde predomina a exclusão social. Pobreza urbana, dinâmicas familiares expulsivas, moradias localizadas em comunidades de risco, ausência ou degradação de equipamentos públicos destinados a lazer e cultura, entre outros fatores, levam centenas de jovens a pautarem sua sociabilidade preferencialmente na rua. Para essas crianças e adolescentes, a rua se apresenta como o local ideal para o exercício da sobrevivência, além de oferecer a possibilidade de vivenciar inúmeras situações, algumas até muito lúdicas apesar do risco oferecido.
O consumo de drogas surge como integrante de um estilo de vida próprio, de uma cultura compartilhada, funcionando como válvula de escape de uma dura realidade. Soma-se a alta incidência de doenças sexualmente transmissíveis e infecção pelo HIV, em parte pela precocidade das relaçõe sexuais, muitas delas antes da puberdade.
Projeto Quixote
O Projeto Quixote da Universidade Federal de São Paulo atende crianças e adolescentes em “situação de risco”, sobretudo de perda de vínculos afetivos, das referências familiares e escolares, e até mesmo da infância. Os riscos estão relacionados às circunstâncias cruéis da violência, da prostituição, do circuito do uso de drogas e do medo.
O projeto visa a criação de vínculos afetivos, essenciais ao resgate da auto-estima e ao atendimento de demandas espontâneas, pela equipe multidisciplinar. A atenção à saúde, em especial à saúde mental, é prestada de forma global, com atendimentos pedagógicos que incluem a inserção na escola formal e no mercado de trabalho, além do atendimento a familiares.
Foram entrevistadas 290 crianças e adolescentes que procuraram o serviço ao longo de um ano, a maioria do sexo masculino (71%) e com idade entre 13 e 17 anos (70%). Os principais motivos que os levaram ao Projeto foram participação em atividades, tratamento para uso de drogas e curiosidade.
Foi grande também o número de jovens que chegaram demandando atendimentos na área de saúde – avaliação psicológica e consultas médicas, o que pode indicar dificuldade de acesso à rede de atendimento disponível para a população em geral.
Os encaminhamentos são feitos principalmente por instituições (unidades da Febem, abrigos, conselhos tutelares e serviços de saúde) e ficou claro nas entrevistas que o Projeto Quixote é uma das poucas alternativas acessíveis, especialmente na área de saúde mental.
Mais da metade dos jovens que procuraram o serviço (61%) ainda mantinham vínculos familiares, mas 35% deles haviam dormido fora de casa no último mês e mais de 65% referiram circular entre a rua, instituições e sua casa.
Lares desfeitos, trabalho infantil e evasão escolar
Grande parte das crianças e adolescentes não moram com os pais ou vêm de lares onde a união conjugal foi desfeita (77%), com predomínio de famílias lideradas por mulheres. Em mais de 30% dos casos o responsável pelo sustento da família estava desempregado há bastante tempo e mais de 40% dos jovens realizavam alguma atividade para obter dinheiro, principalmente bicos e atividades ilegais.
Geralmente a primeira saída de casa ocorreu quando ainda eram crianças (por volta dos 11 anos) e os motivos estavam relacionados a dificuldades familiares e maus tratos. Foi alta a porcentagem de jovens que relatou possuir irmãos que haviam saído de casa (37%). Os jovens atendidos pelo Projeto têm acesso à escola (apenas 3% deles nunca haviam estudado), mas a permanência é problemática (57% estavam fora da escola).
O alto índice de evasão pode estar relacionado a questões pessoais dos garotos, mas com certeza também tem a ver com a forma como a escola estabelece a relação com seus alunos.
Entre os que estavam estudando, praticamente um terço referia não conseguir acompanhar as atividades escolares e muitos já haviam repetido algum ano. Uma das dificuldades é manter na escola garotos que são muito mais velhos que seus colegas de classe e que, muitas vezes, chegam à 5ª série sem estar sequer alfabetizados.
Violência, delinqüência e consumo de drogas
A vida nas ruas expõe os jovens diariamente a situações de violência, o que pode fazer com que eles percebam a violência como uma resposta normativa a situações de conflito e passem a utilizar eles próprios de atos violentos como meio para resolver os conflitos.
Praticamente 60% das crianças e adolescentes relataram ter sofrido abuso físico e quase 20% referiram abuso sexual. Em grande parte dos casos, o autor dos abusos havia sido algum familiar, revelando que a violência já estava presente na vida desses jovens antes mesmo de sua ida para a rua.
Entre os adolescentes, 32% estavam cumprindo medida socioeducativa no momento da admissão ao projeto. É necessário muito cuidado ao se avaliar a questão da delinqüência nessa população, pois ao viver na rua a criança acaba tendo que garantir seu sustento e sobrevivência num meio hostil, no qual prevalecem regras rígidas, marcadas geralmente pelo recurso à violência e à força. Cometer ou não um ato infracional é uma questão circunstancial na vida desses meninos.
Mais de 60% dos entrevistados passavam parte de seu tempo na rua. A maior parte destes (70%) buscava nas ruas atividades de lazer. A desarticulação dos espaços de convivência dos bairros de origem dessas crianças e adolescentes (tais como escolas, centros culturais, praças), somada à violência crescente, faz com que seja difícil para os jovens encontrarem na comunidade ao seu redor uma possibilidade de exercício da sociabilidade mais interessante que a oferecida pela rua.
Praticamente 60% dos jovens que foram admitidos no Projeto no período do estudo foram classificados como usuários moderados ou pesados de drogas. Foram altas as freqüências de uso experimental (76%) e recente (61%) de drogas e as substâncias mais utilizadas (excluindo-se álcool e tabaco) foram maconha, cola e cocaína inalada.
Os jovens relataram ter iniciado o uso de drogas muito cedo, em especial o uso de álcool e tabaco, por volta dos 11 anos. Isso alerta para a necessidade de limitar o acesso das crianças também às drogas lícitas, cujo uso é socialmente aceito e muitas vezes até incentivado. Foi muito alto o uso de álcool e drogas considerado pelos adolescentes como abusivo entre seus familiares: 70 e 40% respectivamente.
A associação entre uso de drogas e comportamentos delinqüentes não representa necessariamente uma relação causal. A hipótese “econômica”, que relaciona os comportamentos delinqüentes à necessidade de obtenção de dinheiro para garantir o consumo de drogas, tem progressivamente perdido força. Tanto o uso de substâncias psicoativas como os delitos parecem fazer parte do processo de socialização na cultura da rua, estando relacionados a outros fatores.
Na realidade, o que parece existir é a associação entre estilo de vida delinqüente e perpetuação do uso de drogas. Da mesma forma, com relação à prática de atividades de subsistência, o componente de maior peso não é a pobreza em si, mas a forma social concreta que ela vai adquirir em cada segmento da população.
Relações sexuais e comportamentos de risco
Mais de 75% das crianças e adolescentes já haviam tido relações sexuais e a média de idade na primeira relação foi de 12,5 anos. Vários comportamentos de risco foram relatados: 56% nunca usavam preservativos ou o faziam apenas às vezes; cerca de 40% relataram mais de 10 parceiros na vida; 22% mantinham relações sob os efeitos de drogas; 23% tiveram relações com mais de um parceiro no mês anterior à entrevista; 40% referiram relações com parceiros casuais; 15% já haviam apresentado alguma DST.; 8% se prostituíam.
Apesar da maior parte ter relatado preocupações a respeito da AIDS (81%), os jovens mantinham comportamentos de risco e menos de um terço já havia procurado algum serviço para realização de exame sorológico para detecção de HIV.
Conclusão
Estes dados levam à reflexão sobre a relação entre a privação de direitos fundamentais e o risco que isso representa para a saúde física e mental. A questão do uso de drogas e a adoção de comportamentos de risco por crianças e adolescentes em situação de rua exige estratégias abrangentes, que levem em conta a complexidade do problema. É claro que é impossível “medicalizar” uma questão que é social; realmente, respostas médicas não vão solucionar o problema.
Porém, isso não nos exime de responsabilidade: é também uma questão de saúde pública que diz respeito a todos nós que, além de cidadãos, somos médicos. Como diz um grande amigo, psiquiatra e educador, quando reconhecermos que a privação de direitos humanos produz doença e que, inversamente, a promoção desses direitos produz saúde, estaremos bem próximos de um recomeço.
* Fátima Dinis Rigato é pediatra, com mestrado em psiquiatria, curso de aperfeiçoamento em adolescência e uma das coordenadoras do Projeto Quixote.