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CULTURA (pg. 38)
Chang Dai-chien
Neve matinal, 1965
Chang Dai-chien, o Picasso chinês, e o Brasil
José Roberto Teixeira Leite*
Primeira imagem: Lotus e patos mandarins, 1947. Acima: Lotus, 1965
Num leilão realizado em Hong Kong, em junho de 2011, 25 pinturas de Chang Dai-chien (1899-1983), pertencentes a um único colecionador, foram vendidas por US$ 87,3 milhões. Só por Lotus e pato mandarim foram pagos US$ 24,5 milhões, novo recorde para obras desse pintor. Naquele ano, aliás, Chang Dai-chien foi o artista que mais vendeu em leilões internacionais, à frente do espanhol Picasso e do norte-americano Andy Warhol: nada menos de 550 milhões de euros. Mas, perguntarão: e nós, o que temos com isso? Muita coisa, e explico: Chang Dai-chien, às vezes considerado a personalidade mais instigante da pintura chinesa dos últimos cinco séculos – além de ter sido calígrafo, poeta, colecionador, grande connoisseur e imitador genial dos grandes mestres de tempos das dinastias Ming e Qing – viveu 17 anos em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, onde muitas daquelas 25 obras certamente foram executadas. No Brasil, contudo, ele permanece quase desconhecido, a ponto de um único museu brasileiro – o de Arte do Rio Grande do Sul – possuir obra sua.
Quando se abeirava dos 50 anos, Chang Dai-chien, já então um dos maiores pintores da China e reconhecido internacionalmente, decidiu por motivos políticos deixar o país. Após peregrinar por Índia, Europa e Estados Unidos, e viver algum tempo em Mendoza, na Argentina, ele resolveu se fixar, em fins de 1953, na pequena Mogi das Cruzes, onde pelos próximos anos levou vida retirada, em meio ao Jardim das Oito Virtudes e junto ao Lago dos Cinco Pavilhões por ele projetados, quase uma China em miniatura. A um canto do jardim, sob uma lousa, ele enterrava velhos pincéis e outros instrumentos já gastos de pintura ou caligrafia, como se fossem pessoas falecidas. Foi no sossego do ateliê de Mogi – o Pavilhão do Grande Vento –, onde nasceram as obras que exporia, com sucesso crescente, em Nova York e Tóquio, Paris e Londres, Chicago e Genebra, Bruxelas, Hong Kong e meia dúzia de outras cidades, embora raras vezes as tivesse mostrado no Brasil. Por aqui, poucos perceberam a importância daquele homenzinho de longas barbas brancas, vestido como os antigos letrados chineses, que todos os dias realizava extensas caminhadas apoiado a seu cajado, definindo-se como uma Árvore da Montanha, como que a sublinhar a própria solidão. É verdade que para isso muito contribuiu nunca ter aprendido o português, o que impossibilitava qualquer abordagem por quem não falasse o chinês; e que, mesmo quando pousava os olhos na paisagem de Mogi e de suas cercanias, o que via eram as montanhas, rios e vales da China ancestral, que trazia gravados na mente. Não se pense, porém, que não amou a seu modo o país que o acolheu, no qual encontrou a paz que buscava ao partir para terras longínquas. Disso é prova esse trecho de uma inscrição na pintura Letrado sobre uma colina, feita em 1963:
Não digo que sou um estrangeiro nesta terra,
Senão, onde poderia me sentir em casa?
Ou a transcrição de um poema de Li Bo, numa obra de 1968 feita também em Mogi, na qual faz seus os sentimentos do grande poeta:
Perguntam-me por que me fixei entre montes verdejantes.
Sorrio, e nada respondo.
Minha mente está em paz.
Chang Dai-chien vivia no Brasil quando, em 1956, por ocasião de sua exposição individual no Musée d’Art Moderne, de Paris, foi visitar Picasso na Ville Californie, em Cannes. Apesar da barreira dos idiomas e da diferença de temperamentos e de expressão, mútua simpatia surgiu entre os dois, que na ocasião trocaram desenhos. Como deve ter sido emocionante o encontro entre os dois maiores pintores vivos, do Ocidente e do Oriente!
Ao alto: Crianças brincando sob romãzeira, 1948; ao centro, Lotus, 1948; e logo acima, Lotus vermelhos em tela dourada, 1975
Aos 60 anos, Chang Dai-chien, que era diabético, adoeceu seriamente dos olhos, o que o levou a se submeter a várias cirurgias, todas infrutíferas, nos Estados Unidos. Mas o embaçamento da visão levou-o a adotar um novo modo de pintar, no qual alguns críticos ocidentais detectaram a influência do abstracionismo expressionista então em voga, mas que ele próprio definiu como a retomada de uma técnica tradicional de pintura chinesa de pinceladas livres, de há muito em desuso – algo “vago e bruxoleante, mas com uma imagem dentro”, como dela disse o filósofo taoista Laozhi. Foi justamente entre 1967 e 1969, em Mogi das Cruzes, que Chang Dai-chien, fazendo uso de toques sintéticos e de pinceladas vigorosamente lançadas sobre o frágil suporte, produziu suas pinturas mais importantes, aquelas que lhe garantem a celebridade de que hoje desfruta no mundo das artes.
Chang Dai-chien deixou o Brasil em 1970, ao saber que o sítio onde vivera e trabalhara durante tantos anos estava prestes a ser inundado pelas águas de uma represa. Dirigiu-se inicialmente a Carmel, na Califórnia, onde já estivera em 1954, e onde, ao contrário do que ocorrera em nosso país, vivia cercado de amigos, fãs e curiosos, não só chineses, mas também professores universitários, artistas e inclusive hippies, que lhe ofertavam flores e o consideravam um dos seus. Em 1976, mudou-se outra vez, agora para Taiwan, de onde não mais se ausentaria até sua morte em 1983. Num amplo terreno próximo ao Museu Nacional de Taipé, ele construiu sua morada, hoje transformada em museu. Nos jardins, com as próprias mãos, colocou algumas pedras trazidas do Brasil – sentida lembrança do jovem país no qual viveu longos anos felizes.
Chang Dai-chien com a família, e no "Jardim das Oito Virtudes", em sua casa em Mogi das Cruzes (SP)
*José Roberto Teixeira Leite é historiador e crítico de arte, autor dos livros A China no Brasil (esgotado) e Por trás da Grande Muralha