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Edição 66 - Janeiro// de 2014

DEBATE (pg.16)

Solera/Yonamine/Carrazza

Doping e antidoping

Da esq.p/a dir.: Maurício Yonamine, Maria Zilda Carrazza e Fernando Solera

 

Quem faz tremer Messi, Neymar, Usain Bolt e tantos outros astros ou qualquer outro atleta profissional, em todas as modalidades esportivas? Não, não são os adversários. O verdadeiro terror, frente ao qual até o mais experiente deles “amarela”, são as comissões de controle de doping, que – nos bastidores de Copas do Mundo, Olimpíadas, campeonatos e provas nacionais ou regionais – zelam pela ética no esporte e pela saúde dos atletas. Compostas por médicos, enfermeiros e auxiliares, com o importante apoio de retaguarda de laboratórios de ponta, essas comissões parecem exercer um trabalho glamouroso, em decorrência, muitas vezes, do contato direto com lendas do esporte nacional ou internacional. Mas não é bem assim. Ou não é só isso. A responsabilidade é gigantesca e na mesma proporção dos enormes interesses envolvidos. É preciso um preparo técnico e científico amplo e profundo, e uma atualização constante em relação às substâncias que promovem a dopagem para melhorar o desempenho dos atletas, dentre outras exigências.

Para debater e mostrar esse universo especial, a Ser Médico reuniu o médico do esporte Fernando Solera, presidente da Comissão de Doping da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e vice-presidente da Comissão de Doping da Confederação Sul-americana de Futebol (Conmebol); e o farmacêutico bioquímico Mauricio Yonamine, professor de Toxicologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP; com a mediação de Maria Zilda Carrazza, farmacêutica bioquímica, responsável pelo Laboratório de Toxicologia do Centro de Intoxicações da USP, até o ano passado.
 







 

Maria Zilda: Nada mais oportuno do que falarmos sobre a dopagem no esporte à medida que eventos esportivos, mundialmente esperados, estão próximos: a Copa do Mundo de Futebol, neste ano, e as Olimpíadas, em 2016. Sabemos que a dopagem ou doping, em inglês, é utilizada desde a Antiguidade – nos Jogos Olímpicos da Grécia e nas competições na China, com substâncias disponíveis na época, como efedrina, estricnina, cogumelos alucinógenos etc. A finalidade é sempre melhorar o desempenho dos atletas, que têm metas a atingir. Entretanto, muitas vezes elas não são alcançadas, apesar dos treinos intensos, alimentação adequada, esforços etc. Desta forma, alguns atletas aliam-se ao uso de substâncias exógenas ou métodos, nem sempre com conhecimentos técnicos e científicos sobre os mesmos. O desempenho não é importante apenas para a própria projeção do esportista, mas também para o técnico, para o clube e, especialmente, para os patrocinadores financeiros, muito evidenciados atualmente. Na maioria das vezes, em detrimento da saúde do atleta. Depois de vários acidentes ocorridos na prática desportiva, resolveu-se tentar proteger a saúde dos atletas, com a criação da Agência Mundial Antidoping (Wada-Ama). A entidade utiliza duas siglas, em inglês e em francês: Word Anti-Doping Agency (Wada) e Agence Mondiale Antidopage (Ama). Podemos começar, então, abordando o conceito de dopagem?

Mauricio: O conceito de doping não é fácil. Todo mundo tem uma ideia do que seja, mas só o código mundial de antidoping tem sete páginas apenas para defini-lo. Não é somente o uso de substâncias proibidas. Se a pessoa se recusar a fazer o exame, se portar substância proibida, se tentar se dopar, e se passar a substância para outro, também é doping. Simplificando, é o uso de substâncias ou métodos que seriam prejudiciais à saúde do atleta ou adversários, e que poderiam aumentar o seu desempenho e resultar na presença dessas substâncias no seu material biológico. O montante de dinheiro envolvido nessa área é muito elevado, o que faz a tentação aumentar. O controle antidoping, feito por meio das análises toxicológicas, é um jeito de inibir essa prática.

Maria Zilda: A lista atual de substâncias e métodos de dopagem é elaborada por quem?

Fernando: Desde o ano passado, a lista de substâncias e métodos proibidos é atualizada duas vezes por ano, em janeiro e julho, pela Wada-Ama. São feitos alguns ajustes: substâncias novas são acrescentadas e outras podem ser retiradas. A agência disponibiliza essa lista em seu site na internet (www.wada-ama.org). Até 2012, a atualização era feita apenas em janeiro. Vale para todas as atividades esportivas.

Maria Zilda: Como é constituída essa comissão? Ela decide por quais países?

Fernando: A Wada-Ama tem um comitê executivo médico, formado por profissionais do mundo inteiro, que trabalham com pessoal de laboratório. É, praticamente, uma força tarefa para verificar a mudança no perfil de um determinado tipo de atleta ou modalidade esportiva, e trabalha com os resultados. Se, por exemplo, alguma coisa muda no atletismo, todas essas pessoas fornecem subsídios para que a substância usada seja dissecada. Algumas, contudo, entram na lista e, depois de muito estudadas, saem, como a creatina, uma das mais conhecidas. Percebeu-se que não tinha nenhuma interferência no desempenho do atleta.

Maria Zilda: Quais são as metodologias de identificação de doping e quais os materiais biológicos coletados do atleta?

Mauricio: O controle antidoping é feito, principalmente, na urina e, em segundo lugar, no sangue. A lista de substâncias proibidas é muito extensa. Envolve as exógenas – estimulantes, narcóticos, diuréticos e hormônios; e esteroides – anabolizantes e hormônios peptídicos. Existem também os métodos de dopagem, como o doping sanguíneo e o genético. É complicado, pois a infinidade de possibilidades de dopagem dificulta o controle. As substâncias exógenas são mais fáceis de ser detectadas porque não deviam estar lá no organismo. Detectá-las já comprova o doping. É bem mais difícil quando envolve substâncias que o corpo produz, por exemplo, a testosterona, uma das que mais dão resultado positivo nos exames. Contudo, mesmo assim, contamos com alguns recursos, como equipamentos e estratégias que conseguem detectá-las. A dopagem sanguínea é uma das mais difíceis de detectar porque, às vezes, os atletas utilizam seu próprio sangue, em um processo chamado de autotransfusão. Para is­so também há uma técni­ca, denominada Citometria de Fluxo, que consegue diferenciar vários tipos celulares e que pode comprovar a manipulação sanguínea.
 


Maria Zilda: A dopagem beneficia, de fato, o desempenho do atleta? Até que ponto?

Fernando: É preciso levar em consideração duas possibilidades: quando o próprio atleta se dopa e quando ele é dopado por falta de informação. De dois anos para cá, conseguimos implantar nos tribunais de esportes brasileiros que, onde existir uma investigação sobre doping, tem de haver um médico na comissão para orientar e assessorar tecnicamente quem está julgando. Quando o atleta se dopa intencionalmente, beneficia-se com um melhor rendimento e, provavelmente, ganha a competição ou tem uma melhor colocação, porém em detrimento de sua saúde. Os objetivos do controle de doping, sem dúvida nenhuma, são três: permitir oportunidades iguais a todos participantes, o que é um pouco ilusório, mas tentamos fazer isso; manter a ética no esporte; e, principalmente, salvaguardar a saúde do atleta. Existem inúmeros casos de fatalidades por causa do uso de substâncias proibidas.

Maria Zilda: O álcool é proibido em todas as modalidades esportivas? Como a cafeína é avaliada na performance dos atletas?

Fernando: Acredito que a cafeína foi voto vencido, ou seja, ninguém conseguiu controlá-la. Os métodos de análise estão ficando mais sensíveis a cada ano, complicando a vida do atleta. Se ele tomar café, refrigerante ou remédio com cafeína para dor de cabeça dá positivo no exame. Por isso, as comissões mundiais de doping resolveram esquecer essa substância, porque não tem como controlar, senão todo mundo seria pego no controle antidoping.

Mauricio: O álcool é proibido apenas em determinadas categorias de esportes. Em relação a ele, fica claro o conceito segundo o qual o doping pode ser prejudicial não só para o próprio atleta, mas também para o adversário.

Fernando: É proibido, evidentemente, no automobilismo, no arco e flecha, no tiro, e em todos os esportes nos quais se pode colocar em risco uma pessoa próxima.

Maria Zilda: E no futebol?

Fernando: Até sete anos atrás, usávamos, no futebol, a cerveja como estimulante para urinar, na sala de controle de doping, depois do jogo. Mas atualmente isso é proibido, por uma questão ética. Agora, o atleta é hidratado com água, suco ou refrigerante. No antidoping internacional, com o qual trabalho, temos de oferecer as bebidas com as quais os atletas estão acostumados. Eles também podem trazer as suas bebidas, não é proibido. Mas são responsáveis por tudo que ingerem. Esse é um preceito básico da Federação Internacional de Futebol (Fifa). Não tem como o atleta dizer que não sabia, isso não existe. No futebol, o exame não pode ser por meio do sangue porque quando o atleta termina uma partida, está hemoconcentrado, e seu perfil sanguíneo comporta-se de forma totalmente diferente. Há também o “passaporte biológico”, que fizemos no Brasil, pela primeira vez, na Copa das Confederações. A cada delegação que chegava ao País, eu enviava uma equipe – formada por enfermeiros, médicos e auxiliares (fisioterapeutas, educadores físicos, profissionais que trabalham no esporte) – ao hotel e examinávamos a urina e o sangue de todos os atletas. Para a Copa do Mundo, serão 32 equipes, que chegarão às vésperas do torneio. Estou, agora, treinando essas equipes para que estejam aptas quando começar a Copa. Tenho também de distribuí-las em todas as cidades-sede brasileiras. É um desafio.

Maria Zilda: A coleta de urina é feita somente pelo atleta ou tem de ter alguém junto dele?

Fernando: Temos de aliar a parte técnica com a legislação. A partir do momento em que o atleta chega à sala de controle de doping – e isso é mundial, vale para todos os esportes – deve vir acompanhado pelo seu técnico, médico ou dirigente da equipe. Ele tem de sair diretamente do seu local de atuação (campo, quadra, piscina, ringue etc.) para essa sala. Se ele passar no vestiário, descumpre um dos regulamentos, e é passível de punição. Tecnicamente, o atleta tem de manipular o seu material. Um oficial de controle de doping o orienta a escolher um dos kits na mesa, a abri-lo e a manipulá-lo. O atleta diz quando quer urinar e tem uma área reservada para isso, uma espécie de mictório, com espelho na frente e em cima, sempre acompanhado pelo oficial do controle. Garanto que no Brasil e na América do Sul, região onde dirijo o controle antidoping pela Fifa, o atleta urina de frente para o oficial do controle de doping. Ele deve abaixar o calção até o joelho e subir a camiseta porque existe um folclore de que podem trazer uma mangueirinha com a urina de outra pessoa. O atleta urina em um béquer (coletor) e leva-o para a mesa, de onde ele mesmo transporta o material para os frascos adequados, lacra-os e assina.

Maria Zilda: Nos esportes coletivos, como se escolhe o atleta que vai fazer o exame?

Fernando: Nesses esportes somos obrigados a sortear um número de atletas de ambas as equipes. Além disso, podemos escolher quantos outros a gente quiser. No futebol, sorteamos dois de cada equipe, e podemos escolher mais um ou outro atleta, no caso de alguma dúvida ou informação, por exemplo, do árbitro. No voleibol, é um atleta de cada equipe. Já nos esportes olímpicos, fazemos o exame no primeiro, no segundo e no terceiro colocados e, aleatoriamente, em mais um ou dois atletas que participaram da partida. Quando se faz controle “fora de competição”, examinamos a equipe inteira, no treinamento ou na casa do atleta. A Fifa tem cobrado que façamos ao menos 20% desse controle, que pode ser, também, durante as férias do atleta. Muita gente diz, “mas nas férias?”. Sim, ele é atleta e não pode deixar de fornecer informações. Nas equipes grandes como Corínthians, Palmeiras etc, que estão sempre participando de campeonatos, só temos os períodos de férias para fazer o controle “fora de competição” que a Fifa exige.

Maria Zilda: Outra substância da qual se fala é o diurético, considerado mascarante dos testes de doping. Como ele é desmascarado?

Mauricio: Os diuréticos são considerados dopagem porque diluem a amostra de urina, dificultando a detecção de outra substância. Mas o simples fato de a amostra estar diluída não quer dizer que o atleta tenha tomado essa substância. Nesse caso, deve ser feita outra coleta da urina.

Fernando: O diurético é proibido no esporte também porque, por exemplo, um atleta de luta pode tomá-lo para se enquadrar em uma categoria de peso menor. Seria doping direto.

Maria Zilda: E o uso de carreadores de oxigênio, como, por exemplo, a eritropoetina? Causa prejuízo ao atleta ou o beneficia?

Fernando: A EPO, como nós chamamos a eritropoetina, é uma substância que seria “boa” para o atleta, não fosse o problema ético no esporte. O atleta se beneficia muito. O pessoal do ciclismo a utilizou muito e obteve resultados impressionantes em algumas provas. Buscamos essa substância tanto no sangue quanto na urina. Detectamos hoje cerca de 25% de eritropoetina nos exames, ou seja, de quatro atletas, em um detectamos EPO. Mas, no futebol, não houve nenhum caso nos últimos dois anos. Existe uma outra forma de doping – chamada doping sanguíneo –, que consiste em tirar sangue para guardá-lo durante um certo tempo e recolocá-lo perto do período de competição. O sangue fica mais viscoso e aumenta os riscos de problemas cardíacos, neurológicos, embolia...

Mauricio: A possibilidade de trombose é bem maior. Nas modalidades esportivas que exigem muito como maratona ou ciclismo, a pessoa se desidrata e fica com o sangue muito mais concentrado. Então a possibilidade de ter um colapso é grande.

Maria Zilda: As substâncias são biotransformadas no organismo. Por exemplo, a morfina, a codeína e a heroína dariam, todas, a morfina na sua biotransformação. Como o analista decide qual foi a substância de origem?

Mauricio: O laboratorista é muito técnico. Ele detecta a substância, o que tiver na sua amostra. Pode encontrar a substância original ou não, depende de quanto tempo a pessoa a tomou e de seu metabolismo. No caso da heroína, que se transforma em morfina, esta também é proibida, então acaba se enquadrando na mesma lei. Não é o caso da codeína, que também gera morfina, porém não está proibida, ainda. Ela está em outro patamar, no de monitoramento. Embora não esteja na lista, tomar alguma coisa que tenha codeína é passível de confusão.

Maria Zilda: E se o médico que acompanha o atleta disser: “olha, ele precisou tomar codeína porque estava com muita tosse”? É aceito?

Fernando: Para esses casos, existe a Isenção de Uso Terapêutico (IUT), um documento que todo médico de clube pede quando o atleta precisa utilizar terapêutica de uma droga proibida. Para liberar uma IUT devemos fazer duas coisas importantíssimas: verificar se não existe nenhuma outra opção de tratamento, nem outro tipo de medicamento.

 

 


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