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MÉDICOS NO MUNDO (págs.14 a 17)
Irène Frachon


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Emergência e Regulação: novos desafios dos cursos de Medicina


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Pediatra escala os maiores picos do mundo


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Poesia anônima na capital paulista


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Edição 63 - Abril/Maio/Junho de 2013

MÉDICOS NO MUNDO (págs.14 a 17)

Irène Frachon

Sozinha, médica francesa enfrentou gigante farmacêutico


Até então anônima, como milhares de outros médicos, Irène Frachon lutou contra o poderoso laboratório farmacêutico Servier, que comercializava o anorexígeno Mediator, causador de, pelo menos, 1.350 mortes


Casada, mãe de quatro filhos, a médica francesa Irène Frachon mantinha uma rotina comum, na cidade de Brest, no litoral noroeste da Bretanha, onde trabalha como pneumologista no Centro Hospitalar Universitário (CHU) local. Até que, num certo dia de 2007, um colega cardiologista a chamou para discutir o caso de uma paciente diabética, portadora de lesões valvulares. Sua vida começaria, então, a ser fortemente modificada. Era o início de sua luta contra um dos gigantes da indústria farmacêutica francesa, o influente laboratório Servier.

“Ela não estava bem, as lesões me lembravam as dos pacientes que tinham tomado o Isoméride, um anorexígeno, também do laboratório Servier, proibido em 1997. Quando perguntei ao meu colega o que a paciente tinha tomado, ele respondeu: Mediator”, disse a médica, posteriormente, ao jornal francês Libération. Intrigada, começou a pesquisar e logo veio a primeira surpresa, o medicamento era proibido na maioria dos países, mas não na França. “Demorou para que eu percebesse que o princípio ativo do Mediator – um inibidor do apetite, também da classe dos anorexígenos – era próximo ao do Isoméride. Isso não era dito, aliás, afirmavam o contrário”, explica.



Livro Mediator 150mg. Quantos mortos?, de Irène Frachon

O período de 2007 a 2009 foi o pior, confessa Irène, em entrevista à Ser Médico. “Após certo tempo de pesquisa, cerca de dois anos, dei-me conta, em uma noite de fevereiro de 2009, que as provas que eu procurava estavam evidentes. O Mediator tinha matado e ferido de verdade, e esse processo ainda estava em curso, em grande escala. Percebi que, a cada manhã, centenas de milhares de pessoas ingeriam um veneno e que, em alguns, o processo de destruição das válvulas do coração – que eu havia observado bem nos pacientes bretões – estava acontecendo. Foi terrível. Era preciso parar aquilo. É um baque, que, na verdade, a gente não supera”.

A luta contra o gigante da indústria farmacêutica francesa apenas começava, com uma correlação de forças totalmente desigual. Do lado do laboratório, advogados bem pagos e o peso de seu lobby. Do outro, o da médica, que, além de sua convicção e persistência, contava, então, apenas com o apoio do marido, dos filhos, de seus colegas do CHU, e de algumas outras poucas pessoas. Para complicar, não faltavam acusações de que estava querendo se promover etc. Contudo, o mais importante estava lá. Como disse a jornalista Ariane Chemin, amiga de infância, “Irène é uma rocha inquebrável”.

Suas pesquisas demonstraram que o Mediator levava a duas complicações graves: a hipertensão arterial pulmonar e, mais frequentemente, o comprometimento das válvulas do coração (valvulopatias), que pode evoluir para uma insuficiência cardíaca, provocando o óbito.

Número de mortes
“O número de mortes provocadas pelo medicamento foi calculado estatisticamente – não foi possível fazer um recenseamento – pelos epidemiologistas do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm), da França, que publicaram seus estudos em dois jornais científicos, o La Presse Médicale e no Pharmacoepidemiologic Drug Safety, em 2012. Segundo calcularam, ocorreram pelo menos 1.350 mortes durante o período de comercialização do Mediator (1976-2009). É uma estimativa conservadora, que não leva em conta os óbitos decorrentes de outra complicação, a hipertensão arterial pulmonar – mais rara, porém muito grave – e as mortes que aconteceram fora dos hospitais”, explica a médica.

Assim que encontrou as provas de suas suspeitas, naquela noite do inverno europeu de 2009, quando estudava os dossiês de valvulopatias, a médica não perdeu tempo. Juntamente com uma enfermeira de seu serviço no CHU, montou um estudo de caso-testemunho demonstrando sua descoberta e comunicou à Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Produtos de Saúde (Alssaps). Também procurou apoios, como o de uma ex-professora da Faculdade de Medicina e de outra colega, epidemiologista. Apesar de 300 mil pacientes estarem tomando o Mediator, a Alssaps só suspendeu a comercialização do medicamento vários meses depois, em novembro daquele ano.

Irène não parou por aí. Escreveu, o mais rapidamente possível, o livro Mediator 150 mg. Quantos mortos? À revista L´Express explicou tê-lo redigido “para que as vítimas, geralmente de origem modesta, pudessem apoiar-se nele diante dos tribunais”. O laboratório, claro, nega sistematicamente o nexo dos óbitos com o Mediator. Conseguiu, por algum tempo, proibir o uso do nome do medicamento no título do livro. Porém, as pesquisas da médica foram convalidadas por importantes instituições francesas.

 

 

 

Em meio aos constantes recursos do Servier, a luta judicial dos pacientes contra a empresa farmacêutica ocorre, atualmente, em três níveis: 1) processos nos tribunais civis para obter indenizações em decorrência dos efeitos do medicamento. “É caro, longo e extremamente penoso para as vítimas, que devem enfrentar os terríveis advogados do laboratório e os especialistas, geralmente incompetentes, que não conhecem direito os efeitos medicamentosos”, afirma Irène; 2) Um órgão estatal, o Escritório Nacional para a Indenização de Acidentes Medicamentosos (Oniam), realiza perícias gratuitas e facilita negociações amigáveis com o Servier. “A perícia não é boa e o funcionamento desse processo é também bastante criticado”; 3) Processos penais estão em curso: um deles, após instrução (com buscas etc.), está em vigor desde janeiro de 2011; e, em outro, o Servier foi indiciado por fraude com agravos, homicídios e lesões não intencionais. “Resta saber se eles serão julgados um dia...”, questiona a médica.

Filme
A luta contra o Mediator repercutiu tanto na França que vai virar filme, produzido pela Haut et Cour e dirigido pela cineasta Emmanuelle Bercot. O roteiro está sendo escrito e, provavelmente, começará a ser rodado no final deste ano. “Não sei qual será o título nem os atores. Respeito a criatividade própria do processo”, pondera a médica. “Acho que essa história é universal e de uma densidade humana incomum. Ela toca o fundo da alma humana, nos seus melhores e piores aspectos. Gostaria que isso transparecesse no filme. Que as vítimas sejam ‘visíveis’, não de maneira piedosa, mas em suas essências, pois elas foram enganadas e ignoradas. A emoção deve ser de uma violência fecunda...”, observa.

À revista L´Express, ela contou que estava “devorando obras de filósofos, como Hannah Arendt, sobre mentira, manipulação e desobediência civil, para procurar as respostas para o caso” que, ingenuamente, no início, pensou que terminaria “com a prisão dos gângsters do Servier”, e isso, até agora, não aconteceu. Achou as respostas? – indagou-lhe a Ser Médico. “Constato, a cada dia, que o que os filósofos, sociólogos e historiadores observaram e descreveram sobre esses mecanismos perversos das sociedades humanas ocorre, em grande escala, mesmo no seio de sociedades aparentemente ‘pacificadas’ e ‘civilizadas’... Eu não imaginava isso antes. Também por essa razão sofri um baque”.

O contraponto, defende Irène, é exercer a Medicina “com empatia”. E isso, afirma, aprende-se por meio da educação humanista. “Recebi uma educação cristã, protestante, que obriga a amar nosso próximo e, portanto, a olhá-lo, dialogar com ele e tentar compreendê-lo, e isso deveria ser firme e rigorosamente lembrado a quem escolhe essa via. É um princípio ético fundamental para ser médico, e é também um ganho de eficiência. A empatia mobiliza o profissional para pôr fim a um sofrimento, usando todos os seus recursos, questionamentos, inteligência etc. e, portanto, a imaginar os meios terapêuticos e de prevenção, entre outros”.

Alguma mensagem a seus colegas brasileiros? “Nunca esquecer que o interesse do paciente deve ser colocado sobre qualquer outro, poder, dinheiro, situação social, honras... Isso enriquece o médico bem mais que os numerosos privilégios materiais”, conclui.

 


 

“Lançadores de alertas”


A luta de Irène Frachon pode ajudar na aprovação de uma lei, na França, que visa a proteger os “lançadores de alertas” em matéria de saúde e meio ambiente e a reforçar a independência dos especialistas nessas áreas. O projeto de lei foi aprovado pela Assembleia dos Deputados, em novembro último, e deve ser analisado pelo Senado francês, em meados deste ano. Ele prevê também a criação de uma comissão nacional de deontologia e alertas nas áreas da saúde e do meio ambiente.

Dentre os vários artigos, o projeto prevê que qualquer pessoa física ou jurídica “tem o direito de tornar público ou divulgar, de boa-fé, uma informação relativa a um fato ou uma ação, cujo desconhecimento lhe pareça perigoso para a saúde ou ao meio ambiente”. Acrescenta que essa iniciativa, entretanto, “deve se abster de qualquer conotação difamatória ou injuriosa”. O governo socialista de François Hollande aprova o projeto.

Crédito da foto: Arquivo pessoal


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