CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Heiner Flassbeck, economista e diretor da Unctad
SINTONIA (pág. 9)
José Ricardo de C. M. Ayres*
CRÔNICA (pág. 12)
Antonio Prata*
CONJUNTURA (pág. 14)
Os problemas da população de rua
DEBATE (pág. 18)
Haino Burmester e Laura Schiesari
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 24)
O atendimento da população em regiões de alto risco
SUSTENTABILIDADE (pág. 28)
Alerta para o consumo de alimentos contaminados
GIRAMUNDO (págs. 30 e 31)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e atualidade
PONTO COM (págs. 32/33)
Acompanhe as novidades que agitam o mundo digital
EM FOCO (pág. 34)
Sherlock Holmes, um doutor detetive
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 37)
Sugestão de leitura de Krikor Boyaciyan*
HOBBY (pág. 38)
Esporte já não é exclusivo do universo masculino
CULTURA (pág. 40)
Arte urbana conquista espaço internacional
GOURMET (pág. 45)
Arroz indiano
POESIA( pág. 48)
Ana Cristina César
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (pág. 4)
Heiner Flassbeck, economista e diretor da Unctad
“A Saúde não escapa da crise global”
Para o diretor da Unctad e ex-vice-ministro das Finanças da Alemanha, o economista , “se os governos quiserem começar a superar a crise, devem aumentar os salários na medida em que aumentam sua produtividade”. Ele defende, também, o fim da especulação financeira.
A crise global da economia deve atingir o âmbito sanitário, simplesmente porque os governos estão cortando os gastos de todos os lados. Tal simplificação, no caso da Saúde, “não é razoável, por se tratar de um setor público fundamental, que poderia expandir e criar empregos”, considera Heiner Flassbeck, diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Ele falou com exclusividade à revista Ser Médico, após seminário promovido pelo Centro Internacional Celso Furtado, do qual participou, em agosto, na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. O também professor da Universidade de Hamburgo e ex-vice-ministro das Finanças da Alemanha reiterou sua proposta que bate de frente com as políticas ortodoxas de restringir os gastos públicos, adotadas por muitos governos para tentar estancar a crise: “se os países quiserem começar a superá-la, devem aumentar os salários na medida em que aumentam sua produtividade. Aprendam com a China”, aconselhou. Flassbeck defendeu também a regulação do sistema financeiro, ao qual fez duras críticas: “há um verdadeiro jogo de cassino promovido pelos especuladores, envolvendo o uso de moedas de economias razoavelmente equilibradas de alguns países emergentes, como o Brasil”, que ele considera uma nação forte, mas alvo de muitos interesses. “Esses jogadores são os únicos que lucram, e muito, com as ‘apostas’”, reforçou, em entrevista realizada pelas jornalistas Concília Ortona* e Fátima Barbosa**.
Ser Médico: Qual é o significado da atual crise global?
Heiner Flassbeck: Temos novos tipos de crises no mundo – e a econômica é apenas uma delas. Acontece pelo fato de a economia estar estagnada, porque os salários não aumentam de acordo com a produtividade, interrompendo o desenvolvimento dos níveis de mercado. Todos os países querem exportar, mas quem pode comprar? Na Europa, nos Estados Unidos e no Japão há uma combinação suicida que une desemprego, estagnação salarial e cortes de gastos públicos. A partir dela, não se pode esperar que o consumo e, consequentemente, o crescimento aumentem. Em resumo, o perigo é que uma nova crise seja o sinal de que a economia caminha para uma estagnação de longo, longo prazo.
SM: Por que, em sua opinião, algumas pessoas que participaram do seminário afirmaram que sua posição a favor de uma forte regulação dos mercados financeiros, como uma das formas de superar a crise, não é “realista”, mas “um sonho”?
Flassbeck: Meu conceito global pode ser algo difícil de entender, porque há muita gente que acredita firmemente em modelos antigos, por exemplo o de que preços e salários flexíveis resolvem tudo. Só que o mundo mudou dramaticamente – e essas pessoas não percebem que novas abordagens tornaram-se necessárias. Posso citar o exemplo da política monetária norte-americana: creio que, pela primeira vez na sua história, os Estados Unidos pararam de acreditar no mercado como o único a definir as taxas de juros – e isso mostra o quanto estão desesperados. Foi esse mercado o responsável pela criação das chamadas “bolhas” financeiras; e como todos sabem, as bolhas explodem.
SM: O senhor pode explicar por que compara o mercado especulativo a jogos de cassino?
Flassbeck: Porque é isso que eles vivem fazendo. O mercado, os investidores, usam as commodities para obter lucros, bem como as moedas que têm certa estabilidade, como se estivessem apostando em cassinos. Uma das formas é esta: um investidor ou um fundo pega dinheiro emprestado de países que têm taxas de juros baixas e as vende em outro, como o Brasil, em que as taxas são maiores, ganhando muito dinheiro. Isso é bom para ele, lógico, mas não para o país em questão. É por isso que estou propondo que parem, imediatamente, toda especulação com moedas. O Brasil também está sendo usado como uma das vítimas desses jogos virtuais. Mas os especuladores nem se importam, continuam jogando, já que ninguém aparece para pará-los.
SM: Se todo mundo sabe, por que é tão difícil para os governos controlarem o sistema financeiro?
Flassbeck: Há muito interesse por parte de grupos de investidores, que pressionam para que não surja nenhum tipo de regulação séria por parte dos governos. Os especuladores não querem que o governo interfira nisso, pois ganham muito, muito dinheiro com o seu negócio! Obviamente, os políticos não são fortes o suficiente para se oporem a esses lobbies feitos por grupos que financiam suas campanhas eleitorais e outras coisas. Isso é fato em todas as democracias: os políticos não são fortes o suficiente para se oporem ao sistema financeiro. Se tudo fosse perfeito, os governos precisariam desempenhar um papel enérgico no controle da economia, não permitindo que a especulação se ocupe dessa função. Não só por meio da regulamentação, mas também da intervenção nos mercados.
Manifestação em Madri: aprofundamento da crise na Europa levou centenas de milhares de pessoas às ruas, principalmente na Itália, Grécia e Espanha
SM: O senhor defende que os governos não deveriam ajudar os bancos o tempo todo...
Flassbeck: Se os governos continuarem a ajudar os bancos, estes continuarão especulando, como cassinos, e fazendo aquilo que sempre fizeram: prejudicar as pessoas envolvidas em seus jogos. É incrível que nós não façamos nada contra isso: os governos serão sempre solicitados a salvar bancos, e nós, alegres, parecemos ficar dizendo: “vão em frente com as suas apostas em cassinos”, “vão em frente, paguem alguns jogadores irresponsáveis do mercado financeiro e vamos piorar nossas dívidas”. É difícil de entender, mas trata-se de um fato.
SM: A crise econômica mundial aponta os limites do capitalismo – ou o capitalismo é capaz de se reinventar?
Flassbeck: Neste momento, é muito difícil reinventar o capitalismo. Pode até ser que seja possível, mas o capitalismo carrega em si mesmo certos limites, para os quais você olha e conclui: “não consigo ultrapassar isso”. Os salários médios das pessoas, que são o componente mais importante para a demanda privada e a manutenção do capitalismo, não estão subindo, limitando, como consequência, o consumo. Há também tanta gente desempregada que, em algum ponto, as pessoas dirão: “não, esse não é mais o sistema que eu gostaria de ter”. Se a questão referir-se apenas à política capitalista em si, creio que há o temor de que, depois da fase de globalização, comece uma fase de nacionalização ou dos conceitos nacionalistas que defendem o “cada país por si mesmo”. Bem, isso já vem ocorrendo desde o último século.
SM: O senhor acredita que o neoliberalismo seja o culpado pela crise?
Flassbeck: O neoliberalismo é um sistema incompreendido. Existe aí um paradoxo: aquelas pessoas que promovem e lidam com o sistema de mercado, em geral, não o compreendem direito. Provavelmente, a China o entende melhor que seus defensores, pois tem aumentado os salários de acordo com o aumento da produtividade. Este é o paradoxo: chegamos a um ponto em que o sistema de mercado não pode ir em frente. Nos últimos 30 anos, a agenda neo¬liberal nos fez acreditar que tudo deveria ser flexibilizado. Só que não acontece exatamente o que se espera já que, pela teoria neoliberal, com a redução de salários, haveria aumento do número de empregos – e isso não aconteceu, por exemplo, na Alemanha.
SM: O que devemos esperar para o setor da Saúde, se a crise piorar?
Flassbeck: Na maioria dos países, a Saúde é vinculada ao sistema público e é por isso que, por conta da crise global, os governos estão colocando limites à sua expansão, tanto quanto aos outros setores. Os governos estão cortando os gastos de todos os lados, incluindo os correspondentes a esse importante setor, que poderia estar crescendo, expandindo-se e criando empregos. Por isso, a crise atinge mais o setor público de Saúde que o privado.
SM: É possível gerenciar a crise no sistema de saúde apenas aumentando os salários dos trabalhadores em geral?
Flassbeck: O ponto é que, se você tiver melhores salários, o aumento das contribuições direcionadas à Saúde será maior também. Melhores contribuições previnem que ocorra uma pressão adicional capaz de impor cortes a esse setor. Por outro lado, se a contribuição diminuir porque as pessoas estão desempregadas, não recebem salários ou não têm aumentos, há cortes por parte do governo, que não consegue manter o sistema de saúde.
SM: Em sua opinião, como o Brasil pode se sair diante da atual crise?
Flassbeck: Neste momento, seu país é extremamente importante para a mudança de todo esse panorama, pois é alvo de muitos interesses. Em certo período, porém, o Brasil falhou no controle da especulação internacional, a exemplo de outros países. Além disso, deveria mudar sua política monetária, pensar em incentivar o aumento de salário, fazendo com que ele cresça lado a lado com a produtividade, e estabelecer uma meta de inflação.
(*) Concília Ortona é jornalista do Centro de Bioética do Cremesp.
(**) Fátima Barbosa é editora-chefe da Ser Médico.