CAPA
EDITORIAL (SM pág.1)
Homenagem especial a José Aristodemo Pinotti
ENTREVISTA (SM pág. 4)
Professora da PUC analisa a vida em sociedade
CRÔNICA (SM pág. 8)
Texto de Tufik Bauab, presidente da Sociedade Paulista de Radiologia
PALAVRA (SM pág. 10)
Saúde e Educação devem ser prioritárias para crianças entre 0 e 6 anos
CONJUNTURA (SM pág. 14)
Neuroética. Ficção científica é passado longínquo...
EM FOCO (SM pág. 16)
"A pílula mudou o status da mulher e da abordagem de saúde" (Rodrigues de Lima)
ESPECIAL (SM pág. 20)
Novas posturas reafirmam nosso compromisso com a comunidade e o meio ambiente
DEBATE (SM pág. 22)
Especialistas da USP avaliam preservação ambiental e sustentabilidade
GIRAMUNDO (SM pág. 28)
Nova coluna estreia com temas interessantes e atuais
HISTÓRIA (SM pág. 30)
Movimentos populares transformaram o modelo de saúde pública no país
LIVRO (SM pág. 35)
Títulos de presença obrigatória em sua estante
CULTURA (SM pág. 36)
Batatais reúne acervo precioso do pintor paulista Cândido Portinari
TURISMO (SM pág. 42)
Ao sul de Minas, uma cidade imperdível para visitar, praticar esportes e descansar
CARTAS (SM pág. 46)
Comentários dos leitores sobre algumas matérias da edição anterior, nº 47
POESIA (SM pág. 48)
Olavo Bilac
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA (SM pág. 30)
Movimentos populares transformaram o modelo de saúde pública no país
Os médicos no Movimento Popular de Saúde
Originários das periferias de grandes cidades, em plena ditadura militar, os movimentos populares de saúde influenciaram a discussão do modelo de saúde pública descentralizado e universal, sob o pano de fundo da democratização e da participação comunitária. Entre a década de 70 e meados dos anos 80, esses movimentos foram atuantes, principalmente nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Eram compostos por médicos, estudantes, religiosos católicos adeptos da Teologia da Libertação e membros da comunidade, além de militantes de esquerda, a maioria ligada aos então clandestinos Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Ao mesmo tempo, eram herdeiros de alguns ideais das mobilizações sanita¬ristas da primeira metade do século 20, que chegaram a esboçar um modelo de atendimento mais socializante – porém ainda não universal – durante o Estado Novo.
Inicialmente, a mobilização no setor da saúde procurou ter atuação independente e marcar as diferenças em relação às do passado. Menos interessadas nas questões corporativas e voltadas à solidificação das bases comunitárias, as propostas de saúde apareciam como um conjunto de ações sociais para além do bordão vertical “um direito do povo, um dever do Estado”. Assim como foram influenciados por movimentos anteriores, iriam repercutir sobre os do futuro.
Walter do Nascimento, um dos fundadores da APS de Cangaíba, atendendo um paciente
Na Grande São Paulo do início da década de 70, a crescente concentração populacional na periferia era a caótica consequência da onda de migração em busca de emprego no polo industrial paulista. Nessas regiões, faltava quase tudo e, mesmo sob a camisa de força da ditadura, o movimento conseguiu se organizar. O contato entre a chamada “elite” médica e o povo possibilitou uma troca de experiência profícua, senão para ambos, pelo menos para os médicos. “Ver uma dona de casa que mora precariamente na periferia, mas que ainda assim encontra forças para organizar os vizinhos e reivindicar melhorias para o bairro, era algo que nos fazia cada vez mais democratas”, avalia Eduardo Jorge, médico e atual secretário municipal do Verde e Meio Ambiente de São Paulo. Junto com Carlos Neder e Roberto Gouveia, Eduardo Jorge participou dos movimentos populares dos bairros de São Mateus e Itaquera, ambos na zona leste. Seu trabalho médico com a população carente começou em 1976, quando foi aprovado em um concurso público. Podendo eleger onde atuar, ele escolheu São Mateus. “Na época, a escolha foi política”, revela Eduardo Jorge. Sua relação com a região remonta ao final da década de 60, quando participava clandestinamente da organização de setores da população na luta contra o regime militar.
“Saúde é um direito, mas, já que sabíamos falar melhor de medicina, utilizávamos isso como ponte para a conscientização política da população”, justifica a infectologista Regina Aparecida de Medeiros que, em 1976, integrou o Centro Acadêmico dos Estudantes da Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp). Sob a proteção da universidade, o Centro Acadêmico da EPM atuou para a organização do movimento estudantil em prol dessa saúde de base comunitária gestada nos porões de resistência que a ditadura não conseguiu sufocar. Em 1977, o Centro Acadêmico fomentou e conseguiu aplicar um trote diferente nos calouros da EPM. Eles foram levados a reformar um posto de saúde desativado no bairro de Itaquera. “E aqueles alunos conseguiram reunir a população para reivindicar a reabertura do posto”, lembra a infectologista.
Política e saúde: indissociáveis
Da esq. p/a dir.: Júlio César, Natalini, Paulo Mourão, Klotzel, Francé, Nacime e Walter Feldman (à frente, como governador interino de São Paulo); médicos e integrantes do movimento popular que hoje atuam na vida pública ou "militam" na saúde
“Enquanto os médicos atendiam, os estudantes de medicina desenvolviam ações de conscientização sobre cuidados de higiene, pré-natal, direitos civis e de organização política”, revela Regina. “Nós nos reuníamos nas igrejas, nas ruas e nas casas dos moradores. Estendíamos um lençol no muro das casas e passávamos filmes sobre a organização popular. Depois, a comunidade discutia conosco ideias de melhorias para o bairro”, completa.
Regina também atuou no bairro de Cangaíba, importante foco do movimento popular de saúde da década de 70. Gilberto Natalini, hoje vereador de São Paulo pelo PSDB, foi um de seus fundadores, junto com Walter do Nascimento. Ambos conheceram o operário e sindicalista João Chile quando eram estudantes e foram presos pela ditadura. João Chile teria dito que médicos só atendiam a elite, desafiando-os a atender em Cangaíba para provar o contrário.
Quando ambos já eram médicos, foram dar atendimento e orientações de saúde à população dentro da Igreja de Bom Jesus do Cangaíba, junto com outros médicos e estudantes da EPM. O apoio dos padres franceses ali instalados garantia cobertura e proteção às represálias do regime militar. “Sabíamos que éramos visados, mas nunca soubemos o quanto esse movimento incomodou porque estávamos sob as ‘asas’ da igreja”, observa o ginecologista e obstetra Daniel Klotzel, integrante do movimento de Cangaíba até 1980, desligando-se por causa das divergências políticas no grupo.
“Quando chegamos ao Cangaíba, éramos vistos como elite por sermos médicos. Na verdade, nos preocupávamos com a luta pela redemocratização do país, sem que isso diminuísse a importância que dávamos à saúde”, avalia o médico deputado estadual pelo PSDB-SP, José Augusto, que atuou no movimento junto com sua esposa, a também médica e ex-vereadora por Diadema, Maredith Cristóvão.
O médico José Antonio Campos Lila, que inicialmente integrou o movimento de Itaquera, relembra o quão difícil era discutir as questões da saúde sob os preceitos dos direitos humanos e de cidadania, durante a ditadura. “Era um exercício de liberdade questionar o modelo político por meio das ações de saúde. Obviamente, a ditadura não conseguia conviver com essa discussão”, afirma José Antonio. Embora não fossem clandestinos por estarem associados à igreja, alguns cuidados eram tomados dentro dos movimentos populares de saúde. Os novos integrantes eram cuidadosamente selecionados antes de serem convidados a participar, pois era comum a infiltração de espiões dos militares em grupos de esquerda.
Até 1979, o grupo de Cangaíba estava vinculado à igreja, sob o nome de Pastoral da Saúde da zona leste II, e contava com apoio do então bispo dom Angélico Sândalo Bernardino. Depois, passou a chamar-se Asssociação Popular de Saúde (APS), tendo Gilberto Natalini como seu primeiro presidente. “Queríamos tentar eleger candidatos políticos próximos aos nossos interesses, mas dom Angélico não aceitou o envolvimento partidário, sugerindo que fundássemos a APS”, informa o clínico geral e um dos fundadores da entidade, Walter do Nascimento.
Apesar de mais restrita à zona leste, as mobilizações populares da saúde tiveram repercussões e ajudaram a organizar lutas maiores, como o Movimento da Reforma Sanitária do final da década de 70, culminando na 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986, que defendia o acesso universal e integral aos cuidados de saúde. “Aquelas visitas às casas podem ter sido o início da ideia do Programa de Saúde da Família (PSF)”, avalia o médico e delegado regional do Cremesp, Henrique Sebastião Francé. Ele relembra ainda o apoio da APS aos movimentos em favor das “Diretas Já”. A criação do Hospital Municipal de Ermelino Matarazzo e do centro de saúde do Cangaíba também são vistos como conquistas desse movimento. Outro fruto foi a eleição do Sindicato dos Médicos de São Paulo, que nos fins da década 70 passou a ser dirigido pelo Movimento de Renovação Médica, gestado entre os grupos dos movimentos populares da saúde. “O Simesp estava nas mãos das grandes empresas médicas e lutamos para que os médicos assumissem a diretoria da entidade”, ressalta Francé.
“Até hoje as empresas médicas não engolem o fato de termos conseguido a direção do sindicato”, completa Natalini. Para o vereador, “os médicos e estudantes deram uma contribuição enorme à redemocratização do país e à construção de um sistema público de saúde”. Daniel Klotzel reavalia o significado do movimento. “Ele teve mais influência em nossa formação política e humanista e contribuiu para nossa maturidade”.
A APS de Cangaíba completou 30 anos em maio. Alguns de seus fundadores, como os médicos Natalini, Francé e Nacime ainda atendem a população do bairro, aos sábados. Outros médicos que participaram desse movimento foram procurados pela equipe de reportagem, entre eles Jorge Kayano, Sueli Lourenço e o ex-deputado estadual pelo PT, Roberto Gouveia. Sueli Lourenço não foi localizada e os demais preferiram não se manifestar ou indicaram outro colega do movimento para falar em seu lugar.
Dos que participaram do movimento, boa parte continuou a ter algum tipo de atuação política na área de saúde. “Com a abertura política, muitos da APS disputaram eleições, principalmente como candidatos a cargos legislativos”, informa Walter do Nascimento. O médico e vereador Jamil Murad (PCdoB-SP) foi ativo participante dos movimentos populares de saúde, assim como Walter Feldman, atual secretário municipal de Esportes, Lazer e Recreação.
No final da década de 70, a anistia retirou a cassação de direitos políticos que pesava sobre partidos de esquerda no país. Nesse processo, as questões de saúde deixavam de ser politizadas para ser partidarizadas, segundo observam alguns dos médicos participantes dos movimentos populares. Por outro lado, esses movimentos ampliaram sua organização, estabelecendo contatos e alianças com outros coletivos mobilizados pela democratização do país. Entre eles, o Movimento Sanitário (acadêmico-universitário) e o Movimento Médico (sindical), que fizeram a década de 80 entrar para a saúde brasileira como um período de forte contestação de suas características básicas.
Jamil Murad recorda que a APS aproximou-se do movimento sindical do ABC. Ele conta que, em 1979, a associação arrecadou 20 toneladas de alimentos para as famílias dos metalúrgicos que estavam em greve na região do ABC. Para o médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, Julio Cezar Rodrigues, foi no apoio a esses trabalhadores que as diferenças partidárias dentro da APS começaram a se acirrar. “Enquanto para o PCB esta ajuda aos operários do ABC era um ato de solidariedade, o PCdoB já queria assumir a liderança política do movimento”, revela Rodrigues.
Eduardo Jorge também critica a partidarização do movimento, mas defende a politização da saúde. Ele destaca que um dos eixos era atuar com a população na promoção de saúde e na reivindicação de melhorias das condições de assistência. “Essa linha de trabalho foi produtiva e resultou na criação de um movimento popular que se tornou o mais expressivo da época. Foi ele que impulsionou o atual sistema de saúde na região”, diz. Outro resultado foi o fomento do movimento sindical aos trabalhadores da área, que deu origem ao Sindicato dos Trabalhadores da Saúde.
Walter Feldman destaca que os atuais Conselhos de Saúde também são desdobramentos daquele movimento popular. Feldman relembra ainda que a comunicação e troca de experiências entre o Movimento Popular de Saúde, o Movimento Médico e o Movimento da Reforma Sanitária influenciaram o capítulo da Constituição que criou o Sistema Único de Saúde (SUS).
(Colaborou Renan Carvalhais)
Filmes sobre o movimento
Com o apoio do cineasta Renato Tapajós, a APS produziu dois filmes: Um Caso Comum e Luta do Povo. O primeiro fala sobre as condições de vida em um bairro da periferia. O segundo, um documentário sobre os movimentos populares em São Paulo, entre 1978 e 1980, ganhou o prêmio de melhor filme na Jornada Brasileira de Curta Metragem de Salvador, em 1980.
À direita, cartaz de O Incrível Exército de Brancaleone, comédia sobre um minúsculo grupo que empreende atrapalhada batalha na Europa feudal. Em analogia espirituosa, grupo de Cangaíba nominava suas produções filmográficas de O Exército de Brancaleone 2 e 3.