CAPA
PONTO DE PARTIDA
Editorial, com Isac Jorge Filho
ENTREVISTA
Nosso convidado é Diego Gracia, um dos papas da Bioética na Europa
CRÔNICA
Acompanhe texto bem-humorado de Tufik Bauab, médico radiologista
CONJUNTURA
Uma análise da história da hanseníase no país
BIOÉTICA
A situação sombria das mulheres indianas
MÉDICAS EM FOCO
Marilza Rudge e Mary Ângela Parpinelli contam suas trajetórias profissionais
DEBATE
A quebra das patentes dos medicamentos no Brasil
FOTOLEGENDA
Harold Pinter, prêmio Nobel de Literatura, e a política externa dos EUA
SINTONIA
Hospital expõe fotos tiradas por crianças e adolescentes internados
LIVRO DE CABECEIRA
Totalidade e Infinito - Emmanuel Lévinas
CULTURA
Faculdade de Medicina da Bahia: 1ª instituição do ensino superior do país
TURISMO
O crescimento - prazeroso - do turismo rural no Brasil
HOBBY DE MÉDICO
Quando a partitura se transforma em instrumento de trabalho...
POESIA
Entre o Sono e o Sonho - Fernando Pessoa
GALERIA DE FOTOS
BIOÉTICA
A situação sombria das mulheres indianas
Índia vive descompasso demográfico entre os sexos
Texto de Concília Ortona
baseado em artigo de Rama Mani*
"Meninas são inferiores. Fardos. Sâo mais fracas para o trabalho braçal.
Valem menos do que um touro. Não cuidarão dos parentes idosos, se necessário.
Tornam-se cidadãs de 2ª classe, a seguirem seus maridos como cães...
Não merecem ser ouvidas, vistas ou respeitadas."
Os fatos citados no texto acima são algumas das alegações de cunho cultural e religioso que mantêm, firme e forte, uma triste “tradição” na Índia: lançar-se mão de todos os recursos para garantir o nascimento preferencial de varões. Em especial, do chamado feticídio feminino – o aborto seletivo de meninas.
Se em tempos não tão distantes era freqüente o infanticídio de bebês do sexo feminino – aliás, costume adotado também na vizinha China, a única nação para quem a Índia perde em número populacional – hoje a tecnologia disponibilizada pela Ciência, em forma de ultra-sons, é potente auxiliar na seleção, possibilitando a realização de abortos tão logo se identifique uma futura mulher.
Além do componente discriminatório presente no procedimento, carrega-se, na bagagem, um resultado perverso e preocupante: a Índia está virando uma terra de homens. Em conseqüência, fadada à extinção, apesar da já mencionada densidade demográfica. Em 1990, o censo local concluiu que o país possuía 25 milhões de homens a mais do que mulheres. Em 2001, a diferença havia aumentado para 35 milhões e, agora, estima-se que tenha alcançado a marca de 50 milhões.
No norte, em Estados como Haryana e Punjab, a relação de nascidos vivos é de 1.000 meninos, para 670 meninas – vale lembrar que tradicionalmente os números assemelham-se em quase todo o mundo, com sensível diferença maior para o sexo feminino.
Violência
Estudo recente promovido pela Universidade de Toronto, Canadá, em parceria com colegas indianos do Instituto de Pós-Graduação em Pesquisa Médica de Chandigarh, sugeriu que, por ano, cerca de 500 mil fetos do sexo feminino são abortados na Índia. “As famílias não se sentem realizadas quando não dão à luz a um menino. O homem continuará o nome e o sangue da família” explicou à revista Lancet o médico Shirish Sheth, do Hospital de Mumbai, numa parca tentativa de justificar os números obtidos pelos pesquisadores canadenses.
Era de se esperar que o aumento da discrepância entre os sexos acabasse por gerar descompensação em vários níveis. Sem mulheres disponíveis para matrimônio, indianos apelam ao tráfico de meninas de países que fazem fronteira, como os – paupérrimos – Bangladesh e Nepal, ou das castas mais baixas.
Até no “comércio” a desvalorização da mulher é indiscutível: nos Estados de Haryana e Punjab, enquanto um touro é comprado por 50,000 rúpias indianas (algo em torno de R$ 2.500), meninas “custam” entre 10,000 e 12,000 rúpias (entre R$ 500,00 e R$ 600,00). Em tempo: as crianças e adolescentes podem passar para outro proprietário, quando consideradas pelos primeiros como “inúteis” e “secas”. Já em Rajasthan é tolerado que vários irmãos se casem com a mesma esposa, propiciando, lógico, altos índices de violência sexual. Ativista de longa data contra o aborto seletivo feminino, o professor Chaudhary Prem Singh, de Haryana, lamenta: “isso é pior do que prostituição. É escravidão da pior espécie”.
Outro defensor intransigente da causa das meninas da Índia, o advogado Swami Agnivesh, conclama a liberação do aborto às mulheres em condições extremas de pobreza (e que quiserem), mas se empenha em reverter a situação de áreas de risco ao feticídio seletivo. Swami é um título religioso de respeito concedido aos estudiosos iniciados no huinduismo. Possuidor de oratória competente, promove discursos capazes de interferir em mentalidades arraigadas – como os proferidos em Tankara e Ahmedabad, onde milhares de moradores de diferentes crenças e classes sociais, além de estudantes universitários, aderiram a uma carreata que cruzou o país, cujas palavras de ordem bradadas pelos motoristas e motoqueiros resumiam-se em “Salve as Meninas: Salve o País”; “Feticídio feminino é pecado” e “Filhos e Filhas são Iguais”. Por outro lado, enfrentou frieza e raiva por parte de alguns como, por exemplo, professores de Haryana, que impediram seus alunos de formularem qualquer palavra de apoio.
O protesto impulsionado por Swami Agnivesh (seguidor dos passos do revolucionário Swami Saraswati, criador do movimento reformista da Índia, no século XIX) deu margem a que líderes religiosos de todas as fés – entre hindus, sikhs, mulçumanos e cristãos – organizassem, com apoio da Unicef, o “Yatra de Compaixão de Todas as Crenças”, ato que se opõe à matança de bebês-meninas.
Religiões e jovens viúvas
O entusiasmo motivado pelo sucesso de seus discursos, porém, não cria falsas expectativas em Agnivesh. Para ele, acabar com o feticídio feminino será inexpressivo se não for acompanhado por uma mudança da sociedade quanto ao gênero, do nascimento até a morte. Apesar do suporte prestado pelos religiosos à sua carreata, ele guarda um certo ceticismo em relação aos líderes, responsáveis pela manutenção da crença milenar que considera mulheres como “cidadãs de segunda classe”, cuja única função “é seguir os homens, feito cachorros” e destituídas dos direitos de “serem ouvidas, vistas ou respeitadas”.
Soma-se a isso o fato de que, de acordo com os hindus, filhos homens são essenciais em rituais de cremação, jamais sendo substituídos por filhas. Para Agnivesh, “os líderes religiosos são os responsáveis por corromperem as mentes das pessoas”. Ele lembra do episódio de 1982, quando uma viúva de 17 anos, moradora no Estado de Rajasthan, foi morta em sacrifício durante os funerais de seu marido, por ordem de sacerdotes e anciãos do vilarejo – revivendo a prática religiosa do Sati, de imolação das viúvas”.
É muito injusto, afirma, que os religiosos encorajem “jovens viúvos a se casarem novamente, ao passo que obriguem meninas que ficam viúvas ainda na infância a serem acordadas às três horas da madrugada, banhadas em água gelada, vestidas com trapos e forçadas a ficar sentadas de frente para um muro durante dias, para que sua sombra perniciosa não caia sobre os jovens virtuosos da cidade”. Clama, ainda, contra a prática de se pagar dotes aos noivos, que mesmo proibida vigora em muitas regiões. Conforme relata, cerca de 5.000 recém-casadas morrem queimadas por ano, porque seus maridos ou sogros se consideram insatisfeitos com o pagamento.
Todos os esforços contra a discriminação e o feticídio até agora aparentemente surtiram efeitos mínimos. E isso mesmo após o governo haver baixado, no início do século XXI, lei proibindo rastreamento do sexo da criança durante o pré-natal. O próprio Ministro da Saúde, Anbumani Ramadoss, expressou a “incapacidade federal” em reverter tamanha calamidade. Abortos na classe alta Engana-se quem imagina que a escolha do sexo seja atitude específica das castas indianas pobres, analfabetas e miseráveis, por conta da ignorância e da exigência do pagamento de dotes por parte das famílias das noivas.
Estudos promovidos por autoridades locais e pela ONU indicam que o feticídio está mais presente nas camadas ricas e com alta escolaridade. Uma das pesquisas demonstrou relação direta entre freqüência de aborto feminino e escolaridade – isto é, ocorre menos entre mulheres com quinta série do ensino fundamental e mais entre freqüentadoras do ensino superior. Tanto as grávidas pobres quanto as provenientes de classes sociais elevadas ocupam posição vulnerável, pois acabam sucumbindo ao desejo e à pressão dos próprios pais, maridos e até, de médicos, que encontram no aborto seletivo lucrativa fonte de renda.
* Rama Mani é escritora, diretora de cursos do Centro de Política de Segurança de Genebra e membro do Conselho da “Coalizão Global: Mulheres Defendendo a Paz”, autora dos livros de jornalismo político Beyond Retribution: seeking justice in the shadows of war (2002) e Physically Handicapped in Índia, policy programme (1988), entre outros.
* Concilia Ortona é jornalista do Centro de Bioética do Cremesp