CAPA
PONTO DE PARTIDA
A classe médica, sensibilizada com a tragédia ocorrida na Ásia em janeiro, ofereceu pronta ajuda às vítimas do tsunami
ENTREVISTA
Silvia Brandalise - Centro Infantil Boldrini
CRÔNICA
Ricardo Freire - Médica de família
SINTONIA
Márcia Rocha Monteiro
CONJUNTURA
Renato Ferreira da Silva e o aumento no número de transplantes no Brasil
BIOÉTICA
Em debate a escolha do sexo dos bebês por métodos de reprodução assistida
POLÍTICA DE SAÚDE
Henrique S. Francé e o Programa de Saúde da Família
COM A PALAVRA
Marivânia Santos: o exercício da Medicina numa plataforma móvel da Petrobrás
MÉDICO EM FOCO
Michel Jamra, o médico que transformou a Hematologia em disciplina na Universidade
HISTÓRIA DA MEDICINA
O bastão de Asclépio, símbolo da Medicina
GOURMET
Bacalhau de Paellera, de Ivan Guidolin Veiga
CULTURA
O Museu da Loucura de Barbacena retrata primeiro Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais
LIVRO DE CABECEIRA
O destaque desta edição é "Status Syndrome", de Michael Marmot
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA
O bastão de Asclépio, símbolo da Medicina
Bastão de Asclépio
Por que o símbolo da Medicina é confundido com o do Comércio?
Asclépio, deus da Medicina na mitologia grega, era filho de Apolo e da ninfa Coronis. Ele reunia a delicadeza de um tocador de harpa e a agressividade de um cirurgião. Criado pelo mestre centauro Quirón, com quem aprendeu a ciência médica a partir do uso de plantas silvestres para a cura das enfermidades, Asclépio tornou-se famoso em toda a Grécia e são atribuídas a ele as cirurgias místicas, chegando a ressuscitar os mortos.
Os milagres feitos por Asclépio causaram inveja a Zeus, o deus supremo, que, ouvindo os protestos de Hades, deus da morte, fulminou Asclépio com os raios dos Cíclopes. Como a mitologia enfatizava o contraste entre as fraquezas dos seres humanos e as grandes forças da natureza, “a ordem natural não podia ser subvertida com a cura e a ressurreição dos mortos”, explica Berta Ricardo de Mazzieri, museóloga do Museu Histórico Carlos da Silva Lacaz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP.
Os gregos buscavam na mitologia a explicação para o mundo em que viviam. Os deuses assemelhavam-se aos mortais e tinham sentimentos humanos. O povo acreditava que sua vida dependia incondicionalmente das divindades e qualquer infortúnio pelo qual passassem cumpria a vontade de uma delas. A relação entre mortais e deuses era amigável. Porém, os deuses eram responsáveis pelos parâmetros de conduta. Se um mortal cometesse um deslize ético, como orgulho, ambição ou prosperidade excessiva, poderia ser castigado.
Segundo Joffre de Rezende, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, o símbolo da Medicina, a serpente enrolada no cajado é a representação da tradição médica. Na Grécia antiga, os símbolos estavam ligados a valores morais, status social adquirido e interpretações da Natureza. A serpente por trocar de pele representa a renovação, a libertação das doenças, o renascimento. O cajado era um símbolo de autoridade espiritual, quem o usava estava num estágio superior de amadurecimento, experiência e temperança.
Muitas vezes o bastão de Asclépio, com uma serpente enrolada, é confundido com o caduceu de Hermes, que tem duas serpentes e um par de asas na extremidade superior: “Ambos têm sua origem na mitologia grega. O de Asclépio é o símbolo da tradição médica; o de Hermes, deus do comércio, dos viajantes e das estradas, foi introduzido tardiamente na simbologia médica”, diz Joffre.
Hermes é considerado um deus desonesto que roubou parte do gado de seu irmão Apolo, sendo obrigado por Zeus a confessar o crime. Para se reconciliar com o irmão, Hermes inventou a lira e a flauta, presenteando Apolo com elas. Em retribuição, ganhou o caduceu. Caduceus, em latim, significa o bastão dos arautos e servia de salvo-conduto, conferindo imunidade ao portador quando em missão de paz.
A Hermes foi atribuída a missão de mensageiro dos deuses do Olimpo por ter a capacidade de se deslocar rapidamente. Como o comércio na antiguidade era ambulante, Hermes foi consagrado como o deus do comércio. O caduceu de Hermes é utilizado em emblemas de associações comerciais, escolas de comércio e escritórios de contabilidade. Joffre conta que mais de um fato histórico concorreu para que o caduceu de Hermes fosse utilizado como sím-bolo da medicina. Um deles teria origem nas trocas culturais entre as civilizações grega e egípcia. Thoth, deus do conhecimento, da palavra e da magia na mitologia egípcia foi associado a Hermes. Desse sincretismo resultou a denominação de Hermes egípcio ou Hermes Trismegistos (três vezes grande), dada também a Thoth. Porém, no panteão egípcio, o deus da Medicina correspondente a Asclepius é Imhotep e não Thoth.
O uso do caduceu como símbolo da Medicina também é atribuído ao desenvolvimento da literatura esotérica, entre os séculos III a.C. e III d.C., que fazia alusão a Hermes Trismegistos, versando sobre ciências ocultas e alquimia. Dessa forma o caduceu foi adotado como símbolo da alquimia, passando para a farmácia e depois para a Medicina. Joffre aponta ainda a influência do editor suíço Johan Froebe que no século XVI adotou um logotipo semelhante ao caduceu de Hermes em sua editora, utilizado na capa de obras clássicas da Medicina, como de Hipócrates. “Além desses, o fato de conferir ao bastão de Asclépio o nome de caduceu, criando uma nomenclatura binária para o símbolo comercial e o médico, e de o exército norte-americano ter usado o caduceu de Hermes como insígnia do seu departamento médico, também colaboraram para estabelecer a confusão entre os dois símbolos”, explica Joffre.
Hospitais militares
Segundo Walter Friedlander, no livro The golden wand of medicine o caduceu foi usado no uniforme dos funcionários de apoio de hospitais militares norte-americanos entre 1851 e 1887, indicando a condição de não combatente. Em 1887, o emblema foi substituído por uma cruz vermelha idêntica à da Cruz Vermelha Internacional, fundada na Suíça em 1864. Desde 1818, o Departamento Médico do Exército norte-americano possuía um brasão com armas e o bastão de Asclépio.
A partir de 1902, os oficiais médicos começaram a usar um emblema inspirado na cruz dos cavaleiros de São João, ou Cruz de Malta, que simbolizam proteção e altruísmo. Nesse mesmo ano o capitão Reynolds, comandante da companhia de instrução do hospital geral em Washington, propôs substituir a Cruz de Malta pelo caduceu, mas o pedido não foi aceito pelo chefe do departamento médico. Quando o comando do departamento mudou, o capitão Reynolds solicitou novamente a alteração alegando: “o caduceu foi durante anos a insígnia de nossa corporação e está associado às coisas médicas, sendo usado por várias potências estrangeiras, especialmente a Inglaterra. Deve-se reconhecer que o caduceu é muito mais gracioso e significativo do que o atual emblema”. O pedido foi aceito, os novos uniformes passaram a ter o desenho da serpente com sete curvaturas.
Joffre aponta uma série de erros nesse episódio: “o símbolo tradicional contém, no máximo, cinco espirais. O caduceu jamais foi a insígnia da corporação, mas do pessoal de apoio dos hospitais. O bastão de Asclépio e não o caduceu é que está historicamente associado à Medicina. Os serviços médicos europeus das forças armadas utilizavam o bastão de Asclépio em seus emblemas e não o caduceu de Hermes”.
O caduceu se mantém até hoje como insígnia do Corpo Médico do Exército e da Marinha norte-americanos. A Força Aérea dos EUA utilizam o bastão de Asclépio. “Toda a nossa cultura baseia-se na civilização grega. Os aspectos conceituais, técnicos e éticos da profissão têm seu berço na Grécia, com a escola hipocrática. Lá a medicina deixou de ser mágico-sacerdotal para apoiar-se na observação clínica e no raciocínio lógico. O bastão mítico de Asclépio representa a Medicina grega em suas origens. Nenhum outro símbolo, muito menos o caduceu de Hermes, deverá substituí-lo”, vaticina o professor Joffre.
Brasil
No Brasil algumas entidades optaram por utilizar o símbolo de Asclépio com estilizações originais: A Associação Paulista de Medicina e a Academia Brasileira de Medicina Militar adotaram o símbolo com o bastão tomando a forma de uma espada; na Escola Paulista de Medicina o cajado é o tronco de uma árvore; a Associação Brasileira de Educação Médica substitui o bastão por uma tocha, simbolizando a luz do saber; no logotipo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto a serpente é um nó cirúrgico. Para o professor Joffre, as estilizações criativas não desrespeitam o símbolo de Asclépio. O que o incomoda mesmo é a confusão com o símbolo de Hermes.
“Lamentavelmente, o caduceu pode ser encontrado em nosso país em revistas, sociedades médicas de fundação mais recente, sites da Internet dedicados à Medicina e, até mesmo, em impressos de algumas universidades. É necessário realizar uma campanha de esclarecimento, sobretudo nas Faculdades de Medicina, junto aos estudantes. O caduceu de Hermes, símbolo do comércio, deve ser visto como um símbolo impróprio aos nobres ideais da Medicina”, conclui.
Pelo menos uma empresa de Medicina de grupo, tirou proveito dessa confusão e adotou o caduceu de Hermes, mais apropriado à sua atividade mercantil, mesmo que seu “produto de mercado” seja a Medicina.