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PONTO DE PARTIDA
A classe médica, sensibilizada com a tragédia ocorrida na Ásia em janeiro, ofereceu pronta ajuda às vítimas do tsunami


ENTREVISTA
Silvia Brandalise - Centro Infantil Boldrini


CRÔNICA
Ricardo Freire - Médica de família


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Márcia Rocha Monteiro


CONJUNTURA
Renato Ferreira da Silva e o aumento no número de transplantes no Brasil


BIOÉTICA
Em debate a escolha do sexo dos bebês por métodos de reprodução assistida


POLÍTICA DE SAÚDE
Henrique S. Francé e o Programa de Saúde da Família


COM A PALAVRA
Marivânia Santos: o exercício da Medicina numa plataforma móvel da Petrobrás


MÉDICO EM FOCO
Michel Jamra, o médico que transformou a Hematologia em disciplina na Universidade


HISTÓRIA DA MEDICINA
O bastão de Asclépio, símbolo da Medicina


GOURMET
Bacalhau de Paellera, de Ivan Guidolin Veiga


CULTURA
O Museu da Loucura de Barbacena retrata primeiro Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais


LIVRO DE CABECEIRA
O destaque desta edição é "Status Syndrome", de Michael Marmot


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Edição 30 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2005

COM A PALAVRA

Marivânia Santos: o exercício da Medicina numa plataforma móvel da Petrobrás

Médica em alto mar

Marivânia da Costa Santos *

O que acontece quando alguém que trabalha em uma plataforma de petróleo adoece em alto mar? Era uma pergunta que, às vezes, passava pela minha cabeça. Até começar a trabalhar em alto mar – ou offshore, no jargão do dia-a-dia –, sabia apenas que os enfermeiros prestavam os primeiros-socorros e transferiam os pacientes para hospitais em terra. Deve ser essa também a idéia da maioria dos colegas médicos.

A oportunidade de conhecer “outro mundo”, com um estilo tão peculiar de trabalho e de vida, tem sido uma experiência agradável e surpreendente. Minha rotina mudou bastante. Em vez de passar horas dentro do carro no trânsito em São Paulo – onde moro –, agora simplesmente visto meu macacão, deixo minha cabine, atravesso um corredor e entro no hospital do navio-plataforma onde trabalho há quase dois anos.

A maioria das plataformas de petróleo da costa brasileira oferece assistência médica. Estou locada numa unidade da empresa Transocean Inc., uma multinacional que tem 10 unidades de perfuração de poços na costa brasileira a serviço da Petrobrás. A política da Transocean demanda a presença de médicos a bordo em todas as unidades. É uma tendência atual nas empresas do ramo, inclusive algumas unidades próprias da Petrobrás têm substituído enfermeiros por médicos.

Trabalho 14 dias a bordo, com folga de 14 dias em terra. A plataforma tem uma dupla de médicos para revezamento a cada duas semanas. Minha rotina começa com a checagem de e-mails provenientes dos departamentos da plataforma e de programações de vôos (de helicóptero). Receber os passageiros faz parte da minha agenda diária de trabalho. Eles informam sobre doenças em curso e uso de medicamentos. Em caso de primeiro embarque, eles preenchem uma ficha médica completa, com identificação pessoal, informações sobre doenças e seus antecedentes, uso de medicação, alergias, tipo sangüíneo e ficha de vacinação.

O controle rigoroso de doenças a bordo é importante quando se trabalha “confinado” em um ambiente que facilita a propagação de doenças contagiosas. As doenças limitantes e o uso de certos medicamentos podem comprometer, por exemplo, o desempenho e a concentração do funcionário que opera as máquinas na perfuração de um poço de petróleo, por exemplo, colocando em risco a saúde e segurança de várias pessoas.

O departamento médico faz o controle de cabines, tendo informação precisa sobre onde se encontra cada tripulante dentro do navio. Essa lista é de extrema importância. Em caso de emergência que demande o abandono repentino da plataforma, os responsáveis podem conferir o número de pessoas e perceber a falta de alguém. A palavra segurança talvez seja a mais mencionada numa plataforma de petróleo. As exigências são cada vez maiores, no sentido de se trabalhar com índice zero de acidente de trabalho. Toda semana a tripulação treina uma situação diferente de incêndio, vazamento de gás, explosão, etc. A participação médica nos treinamentos é essencial e visa a capacitação do grupo de resgate – formado por oito pessoas de vários setores do navio, aptos a prestar os primeiros socorros às vítimas e ajudar no atendimento médico. Ao soar um alarme na plataforma, esse grupo se reúne no hospital e se desloca até o local do acidente com maca, oxigênio portátil e a mala de emergência. Todo o procedimento é realizado sob a coordenação da médica.

Com exceção do transporte de passageiros, feito por helicóptero, quase tudo chega e sai pelo mar, por meio de navios rebocadores – ferramentas, produtos químicos, móveis, containeres com os alimentos e produtos de limpeza. Os containeres são checados pelas médicas quanto ao prazo de validade, condições de armazenamento, refrigeração e congelamento de produtos perecíveis, etc. A checagem é essencial para manter a plataforma livre de surtos de intoxicação alimentar. A água consumida e usada para cozimento dos alimentos tem de ser mineral. Semanalmente colhemos amostras de água dos bebedouros, cozinha, chuveiros e dos tanques de armazenagem para investigar a potabilidade.

Aos sábados visitamos boa parte dos cômodos do navio para inspeção geral de limpeza, saúde e segurança. Posteriormente, entregamos o relatório para providências e consertos – mecânica, elétrica, marinharia, setor de compras, etc. A inspeção é acompanhada pelo capitão do navio-plataforma, pelo chefe da segurança e pela comissária – que é supervisora da hotelaria e coordena o grupo responsável pela limpeza dos camarotes e refeições.

O trabalho médico em plataforma é bem diferente da rotina de um hospital ou consultório. A função prioritária do médico a bordo é o atendimento aos pacientes, a administração do mini-hospital e a manutenção do estoque da farmácia, inclusive de drogas controladas. Nossas atividades estão voltadas à prevenção de doenças a bordo e à manutenção de boas condições de segurança de trabalho.

A capacidade máxima da plataforma que trabalho, chamada NS-20 ou Deepwater Expedition, é de 150 pessoas. O mini-hospital ocupa uma área de 45 m2. Obviamente, é voltado para situações de emergência com múltiplas vítimas. Possui cinco leitos, desfibrilador automático com marca-passo externo, material completo de assistência ventilatória (oxigênio, tubos, laringoscópio, kit de traqueostomia, ambu, etc), bandejas de sutura, bandejas de venóclise, contenção de hemorragias, imobilização cervical e de membros, incluindo tração; kit de drenagem torácica, medicamentos de emergência e de atendimento ambulatorial.

Em terra, há uma logística para dar suporte ao médico de plataforma. Um médico fica disponível (on line e celular) 24 horas para discutir casos complicados ou orientar os trâmites para realização de exames laboratoriais e radiológicos. Em caso de paciente grave ou doença que necessite de investigação imediata, ele é acionado para a remoção do paciente em um helicóptero UTI para um hospital-referência na cidade mais próxima. Em quase dois anos na unidade, apenas duas vezes precisei do helicóptero UTI. A primeira situação foi um paciente com precordialgia típica e o outro caso apresentava trauma de mão com fratura exposta. Outro médico de trabalho da base da empresa em Macaé, no Rio de Janeiro, fica responsável por todos os assuntos relacionados a atestados e afastamento por doença.

São rotina do atendimento os casos ambulatoriais como cefaléia (16%) e queixas gastrintestinais (15%), dores osteo-musculares e dermatites (14%). Numa comunidade restrita, a médica passa a conhecer a tripulação de forma pessoal. O perfil psicológico dos funcionários influencia diretamente nas suas atividades. Não são raros os casos de tendência depressiva ou de dificuldades de relacionamento no trabalho. Afinal, passamos metade do ano juntos, usamos o mesmo refeitório, nos encontramos o tempo todo nos corredores ou decks do navio. Metade do ano esta é a nossa casa, esta é a nossa família.

O trabalho médico offshore está longe de ser extenuante, mas é uma função de grande responsabilidade. O atípico nisso tudo é o fato de uma mulher trabalhar num meio predominantemente masculino. Em média somos 8 a 10 mulheres a bordo, do total de 130 a 140 tripulantes. Temos uma professora de inglês, a comissária, funcionárias da limpeza e, esporadicamente, algumas geólogas.

Há um ponto tênue, no qual a médica é uma amiga, uma mulher que ouve, apazigua e cuida, mas mantêm certo distanciamento emocional, indispensável para o bom atendimento médico. Já almocei ao lado do chefe da mecânica que, algumas horas depois, estava no hospital em parada cardíaca. O aprendizado emocional de situações como esta nenhuma faculdade ensina.

No momento, estamos precisamente a 233 quilômetros da costa, mantendo uma sonda de perfuração que atinge cerca de seis mil metros abaixo do nível do mar. É uma mini-cidade no meio do mar. Quando estou a bordo, não sinto a menor falta do trânsito, do barulho e da agitação de São Paulo. Adoro subir no helideck e contemplar a beleza de cada entardecer, cada dia o desenho do horizonte é diferente. Quando recebemos a visita de golfinhos ou baleias, imaginem a “festa” que fazemos! Temos lazer disponível, sim: acesso a Internet, telefone, todas as cabines têm TV via satélite, podemos encomendar filmes, uma academia de ginástica, sauna e um karaokê – onde nunca me arrisquei. Os aniversários, nunca esquecidos, são motivo para nos reunirmos no refeitório e deleitarmos em comilanças. No meu aniversário, em setembro, me “pegaram”. Ligaram à noite dizendo que o padeiro tinha caído na cozinha e estava muito mal. Saí com o material de atendimento para a emergência, mas... era uma festa-surpresa.

Sem dúvida, o dia de sorrisos mais bonitos é o do retorno para casa. As pessoas trocam os macacões e sobem no helicóptero que os levará de volta às famílias. É muito bom deixar aquele navio-sonda para trás no meio da imensidão de um mar incrivelmente lindo, com a sensação de tarefa cumprida e de merecido descanso nas próximas duas semanas. É difícil descrever aquele pequeno ponto que vai ficando distante no meio de um tapete azul, enquanto o helicóptero se distancia.

* Marivânia da Costa Santos é clínica e endocrinologista, médica da plataforma móvel NS-20 da Transocean Inc. a serviço da Petrobrás.


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