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CAPA

PONTO DE PARTIDA
A classe médica, sensibilizada com a tragédia ocorrida na Ásia em janeiro, ofereceu pronta ajuda às vítimas do tsunami


ENTREVISTA
Silvia Brandalise - Centro Infantil Boldrini


CRÔNICA
Ricardo Freire - Médica de família


SINTONIA
Márcia Rocha Monteiro


CONJUNTURA
Renato Ferreira da Silva e o aumento no número de transplantes no Brasil


BIOÉTICA
Em debate a escolha do sexo dos bebês por métodos de reprodução assistida


POLÍTICA DE SAÚDE
Henrique S. Francé e o Programa de Saúde da Família


COM A PALAVRA
Marivânia Santos: o exercício da Medicina numa plataforma móvel da Petrobrás


MÉDICO EM FOCO
Michel Jamra, o médico que transformou a Hematologia em disciplina na Universidade


HISTÓRIA DA MEDICINA
O bastão de Asclépio, símbolo da Medicina


GOURMET
Bacalhau de Paellera, de Ivan Guidolin Veiga


CULTURA
O Museu da Loucura de Barbacena retrata primeiro Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais


LIVRO DE CABECEIRA
O destaque desta edição é "Status Syndrome", de Michael Marmot


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Edição 30 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2005

ENTREVISTA

Silvia Brandalise - Centro Infantil Boldrini


O Brasil vem obtendo índices de cura do câncer infantil de 60% a 70% nos grandes centros especializados em oncologia pediátrica, nível comparável aos de países desenvolvidos. Uma das grandes responsáveis por esses resultados é a oncopediatra Silvia Regina Brandalise, docente da Unicamp, secretária geral da Sociedade Latino-Americana de Oncologia Pediátrica (Slaop) e presidente-fundadora do Centro Infantil Boldrini (foto acima) – o maior hospital especializado da América Latina na área de hemato-oncologia pediátrica, com 77 leitos e 500 profissionais envolvidos no cuidado direto ou indireto aos enfermos. “Isso representa uma oferta satisfatória para a macro região de Campinas, que tem seis milhões de habitantes”, diz a médica.

A incidência de câncer pediátrico é estimada de 10 a 15 casos novos para cada 100 mil habitantes/ano. “Cerca de 30% das receitas do Boldrini provêm do atendimento pelo SUS, que correspondem a 70%/80% dos pacientes. Do atendimento aos convênios privados – 20% a 25% dos pacientes –, os recursos correspondem a cerca de 34% das receitas; 20% a 30% são de contribuições de pessoas da região de Campinas”, informou ela. A oncopediatra é descobridora de uma doença que ataca os glóbulos sangüíneos e destrói os vermelhos, conhecida como Síndrome Brandalise.

Também é notória a sua capacidade na mobilização de pessoas famosas, principalmente da área do esporte, para a causa do câncer infantil. “O maior apoio que elas dão aos pacientes, é o emocional. As visitas melhoram a auto-estima das crianças, além de trazer a sensação de que a vida continua”, respondeu ao ser questionada se os famosos apóiam financeiramente a instituição.

Nesta entrevista, Brandalise
(foto ao lado) fala de seu trabalho e faz revelações preocupantes sobre a atenção à saúde de portadores de câncer.

Ser Médico. Quais são as ações e as condições ideais para se obter melhores chances de cura do câncer infantil? 
Silvia Regina Brandalise.
As condições ideais dizem respeito à capacitação da equipe, ao seu contínuo aprimoramento e à realização do atendimento em um centro especializado no tratamento do câncer pediátrico. Os seis grandes pilares da atenção médica devem estar integrados num mesmo local: áreas de diagnóstico, de quimioterapia, de cirurgia pediátrica oncológica, de terapia de suporte, de reabilitação e de cuidados paliativos. Recomenda-se a oferta de 10 leitos para cada 50 casos novos ao ano. A integralidade do cuidado num mesmo local é preconizada pela Portaria 3.535 de 1998, do Ministério da Saúde. A não observação dessa necessidade gera profundos prejuízos ao atendimento da criança com câncer. Em 2004, uma publicação conjunta do Ministério da Saúde, da Secretaria Municipal da Saúde e Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo mostrou que, na Região Metropolitana de São Paulo, a probabilidade de sobrevida acumulada até 60 meses foi de 41% para o total de pacientes portadores de câncer, na faixa etária de 0 a 14 anos. Não houve, por outro lado, diferenças significativas na sobrevida, no período de 1997/98 que era de 42% , comparativamente a 1993, que indicava 44%.

Ser. No âmbito da assistência médica, o que pode comprometer as chances de cura? 
Silvia.
Atenção médica fragmentada. O paciente toma quimioterapia num local e, nas complicações – sempre previsíveis –, não encontra leito para a internação. Com freqüência é atendido em prontos-socorros gerais e, se tiver sorte, consegue vaga em hospitais sem condições para receber crianças severamente neutropênicas pela quimioterapia. Acresce a esse grave problema, a escassez de serviços de patologia que assumam a integralidade do diagnóstico. É comum um patologista dar um diagnóstico de neoplasia maligna na preparação com hematoxilina-eosina e encaminhar o material para uma central de imunohistoquímica, localizada em outra cidade, para a definição clara do tipo do câncer. Até se chegar ao diagnóstico correto, passam semanas. Outro ponto importante para melhorar as chances de cura é o diagnóstico precoce. O câncer da criança tem a peculiaridade de ser originário de células imaturas, com elevada taxa de proliferação e altamente sensíveis à quimioterapia. Alguns tumores dobram de tamanho em poucas semanas. Daí o diagnóstico precoce ser da mais alta relevância, influenciando em muito no sucesso terapêutico.

Ser. E o que precisaria ser feito? 
Silvia
No sentido de corrigir esse fluxo da assistência médica à criança com câncer, é necessário que as secretarias estaduais e municipais de Saúde revejam os credenciamentos dados aos Cacons (Centros de Alta Complexidade em Oncologia). Clínicas isoladas de quimioterapia ou de radioterapia não podem e não devem ser credenciadas. No que se refere ao diagnóstico precoce do câncer pediátrico e do adolescente, é mandatória a inclusão destes temas no currículo das Faculdades de Medicina. As ligas estudantis de Oncologia já diagnosticaram, há quase uma década, essa lacuna no conteúdo curricular do ensino de câncer em geral. A pediatria oncológica corresponde a menos de 2% desse programa. Considerando algumas áreas de interface com outras especialidades médicas – como a Hematologia, Neurologia, Oftalmologia, Ortopedia, Cirurgia Pediátrica e Pediatria – um total de 18 horas durante os seis anos de Medicina seriam suficientes para a abordagem do diagnóstico precoce do câncer da criança e do adolescente, independente da especialidade que o aluno irá escolher.

De maneira pioneira, o Departamento de Pediatria da Unicamp instituiu, em 2004, no curso do 4º ano, duas horas referentes ao diagnóstico precoce do câncer da criança/adolescente. Em 2005, serão quatro horas no programa curricular do 4º ano. Para um público alvo distinto – os pediatras – deve ser programado um curso de extensão, anualmente. Atenção especial deve ser dada aos profissionais do Programa de Saúde da Família, objetivando informar os sinais de alerta do câncer infantil. Infelizmente, perde-se tempo e dinheiro atuando sobre o leigo, como público alvo.

Quantas “avós” falam da mancha branca nos olhos do netinho e o oftalmologista ou o pediatra diz que não é nada... E era, um retinoblastoma! Uma recente publicação (Anais Sobope 2004, nº 197) mostrou que em média foram necessárias quatro consultas pediátricas para que se pensasse em câncer. O número prévio de consultas variou de 1 a 20!

Ser. Qual é a diretriz de trabalho da Sociedade Latino Americana de Oncologia Pediátrica na sua gestão como secretária geral?
Silvia.
A Sociedade Latino Americana tem, nesta gestão, a preocupação de discutir com os profissionais de saúde, problemas comuns da América Latina, do acesso ao tratamento do câncer pediátrico e do adolescente. Discussão de políticas de incorporação de protocolos internacionais, de preferência ajustadas à realidade Latino Americana, garantindo-se a análise da eficácia versus custo econômico. Outro aspecto importante está na abertura de campos para treinamentos de médicos residentes, estagiários, enfermagem, farmacêuticos, patologistas, psicólogas, etc, multiprofissionais envolvidos no cuidado da criança com câncer. Possíveis parcerias com órgãos internacionais também são estimuladas, todavia, sem subserviência. Não podemos nos transformar em “enviadores de pedaços de tumor”; o Brasil tem vários centros capacitados a oferecer intercâmbio profissional para toda a América Latina.

Ser. Que países da América Latina salvam mais crianças com câncer e quais têm índices preocupantes?
Silvia.
Motivo de muito orgulho para nós brasileiros deve ser o SUS, que garante a universalidade do atendimento à criança com câncer. Sem dúvida, muito ainda há por ser feito. Recentemente distribuímos a todos os delegados dos distintos países da América Latina, as normatizações do Ministério da Saúde do Brasil na área do câncer, como também, cópia do Estatuto da Criança e do Adolescente. Foi um sucesso! Ações políticas futuras deverão ser desenvolvidas em cada país, ajustando o modelo do Brasil à realidade local. Há países como Cuba, Chile e Venezuela em que o governo dá cobertura integral à criança com câncer. Mas, no México e Bolívia, por exemplo, somente em 40% dos casos, os tratamentos são ressarcidos pelo Governo.

Ser. E no Brasil, há diferenças entre uma região e outra?
Silvia.
O índice de 70% de cura é observado em algumas regiões do país que contam com estrutura e centros de referência para diagnóstico e tratamento, o que nos coloca à frente da média dos latino-americanos. Quase todos os Estados participam de protocolos terapêuticos vinculados à Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, o que favorece a aplicação das melhores e mais atualizadas condutas. Embora o índice de cura alcance 70% nos centros especializados de tratamento, vimos que na região metropolitana de São Paulo, este índice está bem abaixo dessa média, com apenas 40% de cura, de acordo com os dados divulgados em 2004 pelo Registro de Câncer de Base Populacional de São Paulo.

Ser. Certa vez o ex-secretário de Saúde de São Paulo, Gonçalo Vecina Netto, citou seu nome numa entrevista na qual falava que os médicos não controlam a eficácia dos medicamentos. Ele disse que a senhora foi uma das únicas pessoas que fez isso no Brasil, mas que sofreu todo tipo de difamação por conta da denúncia. A sra. poderia contar essa história?
Silvia.
Isso aconteceu há duas décadas. Percebemos que nove crianças portadoras de leucemia linfóide aguda não respondiam ao esquema de terapia inicial. Era prevista uma resposta satisfatória em 95% dos casos e, com esses nove pacientes chegamos a 50% de resposta em alguns casos e a zero em outros. Eram utilizados três medicamentos. Interditamos os lotes dos três produtos para análise. Como os mesmos eram distribuídos pela Central de Medicamentos (Ceme), notificamos o ocorrido para a devida investigação. Poucos dias depois, um laboratório credenciado pela Ceme no Rio Grande do Sul informou oficialmente que os produtos estavam dentro das especificações.

Coloquei vários frascos desses três medicamentos numa mala, me dirigindo à Universidade de Washington, D.C. e ao St. Jude Children’s Research Hospital em Menphis onde formalizei a solicitação da análise farmacológica dos mesmos. Para minha surpresa, o produto Vincristina não foi aprovado em nenhuma das duas instituições. A partir do primeiro relatório oficial dos dois centros americanos, fornecidos quase dois meses após a entrega, notifiquei oficialmente a Reitoria da Unicamp.

Com a interdição daqueles lotes, passamos a adquirir os mesmos medicamentos no mercado e não mais via Ceme – tivemos um retorno às taxas de eficácia de quase 100%. Esclareceu-se também que esses produtos, adquiridos pela Ceme, vinham direto dos laboratórios, não sendo armazenados em qualquer “Central”. A Ceme simplesmente era o órgão pagador. Com o laudo técnico definitivo do St. Jude informando que menos de 1% do princípio ativo estava contido nos frascos, entramos com denúncia na Associação Médica Brasileira (AMB), então sob a presidência de Nelson Proença. A Reitoria da Unicamp não quis entrar com a denúncia, em virtude de suposto envolvimento da Ceme/MS. O Nelson Proença analisou todo o material, encabeçando a denúncia na imprensa, incluindo a TV Globo. Poucas semanas após, ele retirou a denúncia. Depois disso o diretor do Serviço de Farmacologia do St. Jude me ligou dizendo que havia ocorrido um engano. Tanto na análise preliminar, como no laudo definitivo, os seus técnicos haviam se equivocado. Não era menos de 1% do princípio ativo e sim, 100% de atividade!

Ser. E o que a senhora fez?
Silvia.
Estava em profundo desconsolo frente à miséria humana, quando o Oswaldo Giannoti, jovem presidente da Associação Paulista de Medicina (APM), resolveu levar o caso em frente, assumindo também a denúncia. Houve o encaminhamento da investigação junto ao INCQS (Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde) da Fundação Manguinhos e, paralelamente, auditorias de hematologistas da Sociedade Brasileira de Hematologia e do Colégio Brasileiro de Hematologia. Com averiguação dos prontuários e lâminas (esfregaços) de medula óssea dos nove pacientes, se confirmaram os resultados.

O direito da contra-prova foi concedido aos técnicos do laboratório junto ao INCQS, como também, de hematologista trazido pela empresa. Novamente confirmaram-se as irregularidades. O então, ministro da Saúde, Waldyr Arcoverde, deliberou sobre a necessidade da incorporação de Testes de Biodisponibilidade para a análise qualitativa dos produtos disponíveis para o mercado. Isso não era realizado no Brasil. E, a Justiça condenou o laboratório a pagar a quantia equivalente a dez unidades da Vincristina. O laboratório se recusou a pagar e foi sucessivamente recorrendo até o processo ser arquivado.

Ser. Nada aconteceu com essa apuração?
Silvia.
Do ponto de vista da punição ao laboratório envolvido, nada aconteceu ao mesmo. As nove crianças faleceram quando deveríamos ter conseguido a cura em 70% dos casos. Uma das famílias entrou com ação pela perda do filho, mas o laboratório foi inocentado. Do ponto de vista pessoal, o laboratório mandava cartas aos médicos do Brasil, pondo em dúvida minha idoneidade, informando que eu estaria a serviço da “indústria concorrente”. Enfim, pude sentir a realidade da inoperância do nosso Sistema Judiciário. Por outro lado, essa experiência não esmoreceu a necessária vigilância sobre a eficácia terapêutica e suas toxicidades na nossa prática médica.

Ser. Como a sra. lida com a morte?
Silvia.
A imagem da morte é carregada de significados. Dentro do conceito que chamo de “morte amiga”, ela tem a imagem do alívio para o paciente que está sofrendo e para seus familiares. Isso nos ajuda a enfrentar a sensação de impotência, que é inerente à morte. Por outro lado, a imagem da morte, quando interrompe a vida de uma criança pequena ou de um adolescente, é a de um monstro feio. Para esses casos, um poema transcrito pelo Henfil em muito tem ajudado às mães, pais e a nós mesmos. Esse poema ganhei de uma mãe, após o enterro de sua filha de cinco anos. Hoje, esse texto se encontra na Capela de nosso hospital.

“Se não houver frutos
Valeu a beleza das flores
Se não houver flores
Valeu a sombra das folhas
Se não houver folhas
Valeu a intenção da semente”.

No Boldrini temos um trabalho com as mães enlutadas. É um espaço para que elas falem de suas vivências, buscando enfrentar essa dura experiência. Esse trabalho tem um reflexo muito alentador para todos nós profissionais que lidamos com a morte, desmistificando os pesadelos.

Ser. Há algum serviço de apoio aos médicos do Boldrini para trabalhar esse aspecto?
Silvia.
Em geral, o médico é refratário a esse tipo de apoio. Como foi preparado para curar as pessoas, ele não admite a possibilidade de sentir-se fragilizado diante do outro. Isso dificulta qualquer suporte psicológico que passa pela exposição de suas dificuldades. No Boldrini estamos planejando desenvolver a ferramenta do psicodrama na prática do cuidado médico. Isso, possivelmente, permitirá por meio de inversões dos papéis – pacientes interpretam médicos e vice-versa –, maior facilidade da expressão dos sentimentos contidos.

 Ser. As causas da leucemia são genéticas ou existem outros fatores relacionados?
Silvia.
Duas pesquisas – uma delas tomando como base populacional a cidade industrial de Manchester, na Inglaterra – apontam a possível relação entre exposição aos derivados de benzeno e metais pesados e a ocorrência de leucemia do lactente. Hoje estamos procurando ampliar esses estudos aqui no Boldrini, por meio da aplicação de questionários aos pais de lactentes com leucemia, para comprovar ou não essa relação. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) e o Hospital de Base de Brasília também participam desse estudo.


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